Faz muitos
meses, foi enquanto esperávamos um voo que atrasaria duas horas. O saguão
abrigava poucas pessoas e facilmente percebermos um ao outro. Ele, muito alto e
com fisionomia diversa do meu povo de origem. Eu, mulher de baixa estatura e
alguma eterna ousadia. Percebi que ele me olhou com curiosidade; na sequência,
com maior interesse. Eu sorri, apenas isso. Depois, fiquei apreensiva com meu
atrevimento de sinalizar simpatia a um estranho no salão do aeroporto quase
vazio.
Sem dar muitas
voltas, ele bateu com segurança por três vezes no assento vazio ao lado do dele
para que eu fosse até lá. Quanta petulância! Um homem que nem conheço me chamar
com tanta confiança, como se fosse natural que eu aceitasse um convite
formulado daquela maneira... Foi um desafio inesperado.
Sou dada a
desafios. Sem qualquer cerimônia, levantei e fui até ele, que franziu a testa, intrigado
com minha aceitação, sem relutar. Deveria estar habituado a resistências ensaiadas,
mesuras e cenas.
Por que relutaria?
Sou livre e uma conversa diferente ajudaria a passar o tempo, ao invés de
buscar isolamento na prisão da tela do meu celular. Gosto de conversar e até poderíamos
ficar amigos.
De mesma idade, tivemos
rápida afinidade e gostos semelhantes para a música, lazer e... devaneios. Tão
sonhador quanto eu mesma, ele trazia em seus traços de origem italiana um
perfil renascentista desamparado, desnudado na alma e com o coração magoado.
Cantamos em italiano e ele me ensinou a conjugar dois verbos.
O fato é que os
minutos pareciam correr em velocidade anormal diante daquela conversa que fluía
com naturalidade. Enquanto o temporal desabava, falamos sobre um pouco de muita
coisa e fiquei surpreendida com sua leveza de pensamentos.
A chuva pesada
que atrasou nosso voo era cheia de relâmpagos e trovões. Nada ouvíamos, ilhados
do mundo real. Começamos a imaginar pequenos prazeres para aquelas horas de
chuva. Aproveitar o tempo para o amor em leito perfumado e morno, tremulando os
corpos no ritmo da tênue chama da lareira. Em seguida, a pausa silenciosa de
quem desfruta a paz do êxtase.
No aconchegante quarto
da nossa imaginação caberiam planos para o que talvez nunca chegasse. Haveria
desejo e promessas, pois os amantes são assim: mergulham afoitos na paixão
oceânica, para viverem imersos em futuro caudaloso.
Falávamos entre risos,
em baixo volume, com malícia sutil, fluência e liberdade, sem nos tocarmos,
flutuando na aura sensual do teatro que encenávamos brincando de amar sem amar,
em narrativa construída para ilustrar algumas horas.
Ele se divertia,
sentia-se desafiado. Com ternura, passou os dedos em minhas têmporas,
assinalada por alguns rebeldes fios de cabelos brancos. Eu desenhei com o
indicador a sobrancelha dele, farta e quase grisalha. Um sorriso o fez fechar
os olhos e se lembrar de algo que não me disse e que não perguntei, respeitando
o momento.
Só isso... Mas três
mulheres eram nossa plateia e nos observavam com o olhar enviesado de críticas.
Nosso teatro as desagradava, nossa proximidade física febril e maliciosa era reprovável,
mesmo sendo apenas encenação imaginada para um momento de amor não vivido, passatempo
de dois estranhos em uma brincadeira de adultos.
Quando nosso voo
finalmente foi anunciado, levantamos de nossos assentos com melancolia quase
sem sentido. Trocamos cartões de visita e ele me deu um grande e demorado abraço,
deixando que eu me dirigisse à fila para só depois seguir o mesmo caminho.
O casaco preto de
uma das mulheres ficou pendurado na cadeira. Preferi não avisar. Com o arrepio frio
do ar no interior do avião, talvez percebesse o quanto é bom encontrar calor em
outro ser humano e que há milhares de maneiras para isso.
Embarcados, apenas
nosso olhar em procura nos aproximava. Ele me achou e enviou um aceno que respondi
do meu lugar, localizado sobre uma das asas.
Meu Davi acomodou
sua bolsa na cabine sobre a poltrona para seguir viagem. Enviou beijos e
saudações agitadas, depois mais beijos e galanteios pelo celular. Sorri comigo
mesma antes de me despedir. Nossa brincadeira logo seria parte do passado.
Há alguns dias
desabou um temporal assustador. A tempestade me pegou ainda no consultório e me
remeteu à lembrança daquele dia do começo de dezembro último.
As águas de
março caíam impiedosas quando o celular sinalizou mensagem por um aplicativo
famoso. Meu Davi me perguntava se eu me lembrava dele. Eu disse que sim,
especialmente porque chovia muito.
Há meses ele
também pensava nos momentos lúdicos que imaginamos no aeroporto.
“Quando você estiver
para sair, avise-me... estou aqui em frente. Aquele quarto nos espera”.
JOSYANNE
RITA DE ARRUDA FRANCO
PRIMEIRO
LUGAR CATEGORIA PROSA
XIV
JORNADA MÉDICO-LITERÁRIA PAULISTA
Todos
os textos classificados encontram-se na edição 298 de “O Bandeirante” setembro
de 2017
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