31/08/2017

BRINCADEIRA DE ADULTOS


Faz muitos meses, foi enquanto esperávamos um voo que atrasaria duas horas. O saguão abrigava poucas pessoas e facilmente percebermos um ao outro. Ele, muito alto e com fisionomia diversa do meu povo de origem. Eu, mulher de baixa estatura e alguma eterna ousadia. Percebi que ele me olhou com curiosidade; na sequência, com maior interesse. Eu sorri, apenas isso. Depois, fiquei apreensiva com meu atrevimento de sinalizar simpatia a um estranho no salão do aeroporto quase vazio.
Sem dar muitas voltas, ele bateu com segurança por três vezes no assento vazio ao lado do dele para que eu fosse até lá. Quanta petulância! Um homem que nem conheço me chamar com tanta confiança, como se fosse natural que eu aceitasse um convite formulado daquela maneira... Foi um desafio inesperado.
Sou dada a desafios. Sem qualquer cerimônia, levantei e fui até ele, que franziu a testa, intrigado com minha aceitação, sem relutar. Deveria estar habituado a resistências ensaiadas, mesuras e cenas.
Por que relutaria? Sou livre e uma conversa diferente ajudaria a passar o tempo, ao invés de buscar isolamento na prisão da tela do meu celular. Gosto de conversar e até poderíamos ficar amigos.
De mesma idade, tivemos rápida afinidade e gostos semelhantes para a música, lazer e... devaneios. Tão sonhador quanto eu mesma, ele trazia em seus traços de origem italiana um perfil renascentista desamparado, desnudado na alma e com o coração magoado. Cantamos em italiano e ele me ensinou a conjugar dois verbos.
O fato é que os minutos pareciam correr em velocidade anormal diante daquela conversa que fluía com naturalidade. Enquanto o temporal desabava, falamos sobre um pouco de muita coisa e fiquei surpreendida com sua leveza de pensamentos.
A chuva pesada que atrasou nosso voo era cheia de relâmpagos e trovões. Nada ouvíamos, ilhados do mundo real. Começamos a imaginar pequenos prazeres para aquelas horas de chuva. Aproveitar o tempo para o amor em leito perfumado e morno, tremulando os corpos no ritmo da tênue chama da lareira. Em seguida, a pausa silenciosa de quem desfruta a paz do êxtase.
No aconchegante quarto da nossa imaginação caberiam planos para o que talvez nunca chegasse. Haveria desejo e promessas, pois os amantes são assim: mergulham afoitos na paixão oceânica, para viverem imersos em futuro caudaloso.
Falávamos entre risos, em baixo volume, com malícia sutil, fluência e liberdade, sem nos tocarmos, flutuando na aura sensual do teatro que encenávamos brincando de amar sem amar, em narrativa construída para ilustrar algumas horas.
Ele se divertia, sentia-se desafiado. Com ternura, passou os dedos em minhas têmporas, assinalada por alguns rebeldes fios de cabelos brancos. Eu desenhei com o indicador a sobrancelha dele, farta e quase grisalha. Um sorriso o fez fechar os olhos e se lembrar de algo que não me disse e que não perguntei, respeitando o momento.
Só isso... Mas três mulheres eram nossa plateia e nos observavam com o olhar enviesado de críticas. Nosso teatro as desagradava, nossa proximidade física febril e maliciosa era reprovável, mesmo sendo apenas encenação imaginada para um momento de amor não vivido, passatempo de dois estranhos em uma brincadeira de adultos.
Quando nosso voo finalmente foi anunciado, levantamos de nossos assentos com melancolia quase sem sentido. Trocamos cartões de visita e ele me deu um grande e demorado abraço, deixando que eu me dirigisse à fila para só depois seguir o mesmo caminho.
O casaco preto de uma das mulheres ficou pendurado na cadeira. Preferi não avisar. Com o arrepio frio do ar no interior do avião, talvez percebesse o quanto é bom encontrar calor em outro ser humano e que há milhares de maneiras para isso.
Embarcados, apenas nosso olhar em procura nos aproximava. Ele me achou e enviou um aceno que respondi do meu lugar, localizado sobre uma das asas.
Meu Davi acomodou sua bolsa na cabine sobre a poltrona para seguir viagem. Enviou beijos e saudações agitadas, depois mais beijos e galanteios pelo celular. Sorri comigo mesma antes de me despedir. Nossa brincadeira logo seria parte do passado.
Há alguns dias desabou um temporal assustador. A tempestade me pegou ainda no consultório e me remeteu à lembrança daquele dia do começo de dezembro último.
As águas de março caíam impiedosas quando o celular sinalizou mensagem por um aplicativo famoso. Meu Davi me perguntava se eu me lembrava dele. Eu disse que sim, especialmente porque chovia muito. 
Há meses ele também pensava nos momentos lúdicos que imaginamos no aeroporto.
“Quando você estiver para sair, avise-me... estou aqui em frente. Aquele quarto nos espera”.

JOSYANNE RITA DE ARRUDA FRANCO
PRIMEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
XIV JORNADA MÉDICO-LITERÁRIA PAULISTA           


Todos os textos classificados encontram-se na edição 298 de “O Bandeirante” setembro de 2017

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