Aos setenta
e três, levou um enorme susto. Entrou no closet e teve a horrível sensação de
que tinha novelos demais. Tomou de uma caixa aleatoriamente e ao abri-la, viu
quatro enormes novelos azul-turquesa. Londres! Destinados a um colete para o
marido. Abriu outra, uma profusão de cores onde predominava o bordô e derivados
de vermelho e amarelo. Buenos Aires, colchas para as meninas. Outra,
verdes-água, azuis-marinhos, tons de laranja. Paris, meias. Petrópolis, saias.
Boston, cachecóis. Carmins, rosas, casacos, lilases, marrons, blusas. Sua
cabeça começou a girar. Sentiu uma vertigem sufocante ao defrontar-se com tudo
aquilo de um só golpe: combinar memoriosos novelos, peças de vestuário
negligenciadas e a nesga de tempo que ainda julgava dispor, conjurava seu
passado glorioso, seu presente cru e seu futuro incerto em uma armadilha
metafísica. O passado dos lugares e momentos felizes medido nas tranças dos
coloridos novelos cedia vez à negação do presente, pois a mera existência dos
novelos era o reconhecimento de uma ausência que só dela dependia para
persistir. O futuro também não lhe reservava melhor sorte, minguado e exíguo,
ocupado das doenças e nas coisas da idade. Nem se tratava de perceber - como,
aliás, se percebe com frequência - que o tempo passara demasiadamente rápido.
Não. O pavor provinha do extravagante estado de desorientação no interior do
qual já não era possível distinguir passado, presente e futuro. O passado ao
mesmo tempo em que presentificava-se nos novelos revolvidos, não lhe permitia
escolhas futuras tangíveis; souvenires representativos de uma época feliz
cruzavam eras para lhe trazer um futuro que ela sabia não viria em tempo algum.
Teve falta de ar e o coração acelerou.
A agnosia
temporal durou apenas minutos: a flecha do tempo resolvera andar em círculos.
Com dificuldade, moveu sua mão direita e abriu a gaveta onde estavam os pares
das longas e grossas agulhas de crochê tunisiano e acariciou-as com os dedos
nodosos e macios. Só então notou no chão do closet o colorido dos novelos e das
inúmeras caixas abertas em uma desordem quase impressionista. Suspirou. Pôs os
óculos na ponta do nariz e alcançou um dos grandes e espessos novelos
azul-turquesa. Tirou o papel que o cinturava e puxou um metro de reluzente lã
inglesa, passando-a pela nuca. Sentou-se na beirada do pufe e, com movimentos
precisos, pespegou uma fieirada de pontos-meia. Lembrou que os pontos
emprestavam às cores dos fios uma outra dignidade. Teceu outra fileira. E
outra. Sorriu ao ver o novelo transmutando-se em um quadrilátero simples apenas
pelo esforço de suas mãos. O fio, trançado àquela maneira, também tinha outro
tato, pois o milagre geométrico do crochê consiste em transformar linhas em
planos permitindo à palma das mãos deslizar sobre uma superfície macia onde
antes havia apenas a sensação digital do comprimento. A substância do crochê
parece também conter algo mesmo da natureza do tempo já que se, por um lado,
quanto mais complicado é o ponto, mais fio ele gasta para existir, por outro, a
vida talvez possa ser entendida como a conversão da linha contínua do tempo na
extensão de uma colcha que chamamos vulgarmente de “mundo”. Uma tal colcha,
assim configurada talvez servisse para tornar suportável a sensação de
linearidade existencial e nos preservar de sua passagem inconsequente e sem
sentido. Ou, quem sabe, até para nos revelar em suas inevitáveis
irregularidades essa impertinente e mordaz insensatez que, vez por outra,
costumamos desfiar com a unha comprida do remorso...
Aquietou-se,
de fato, imersa em sua atividade. A respiração tomou o ritmo pachorrento dos
que nela não se atêm. E então, lentamente, a cada fileira de pontos, o passado,
o presente e o futuro desvencilharam-se uns dos outros e retomaram seus lugares
nas lindas caixas especialmente reservadas a eles. A agulha de crochê, como uma
varinha de condão, ordenou saudades, inseguranças e projetos, atribuindo a tudo
o sentido apropriado. E apenas depois disso - em verdade, tão somente após a
decifração temporal que só as atividades cotidianas e simples têm o poder de
celebrar ou, no mais das vezes, ocultar, se assim julgar conveniente o nosso
relógio existencial -, única e exclusivamente após isso então, ela pode voltar
a envelhecer em paz.
CARLOS EDUARDO POMPILIO
SEGUNDO LUGAR DA I INTERMED LITERÁRIA PAULISTA
SOBRAMES SP
CATEGORIA PROSA
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