Fui as
marcas das botas no solo coberto de lama naquela cidade pequena, o cheiro vivo
das flores ao anoitecer. Debruçava-me sobre o parapeito da janela, desejava uma
mulher, ignorava outras tantas que lá embaixo gritavam o meu nome e voltava a
dormir envolto em lençóis sujos de suor. Comia com pressa a fim de acalmar o
ronronar de meu estômago. Ria em pedaços: as sílabas saíam umas seguidas das
outras entre intervalos constantes e minha felicidade em notas musicais
predominava sobre os outros ruídos por um tempo ainda maior.
Beijava com
a língua sabida de quem nunca se contentava em explorar apenas um canto.
Sussurrava promessas, escutava recusas, xingava aquele homem. Amava com o
corpo, transava com a mente e gozava
pelo coração. Eu era feito às avessas.
Perdi
paixões, pessoas e objetos. Das tristezas maiores senti as saudades - alguém
que nunca voltaria; a ausência - aquela que poderia retornar se assim
desejasse; o vazio - o não pertencer a mim mesmo. Mas também fui feliz.
De dias ensolarados
tinha o calor pelo meu corpo após uma longa corrida atrás de almas jovens que
mal sabiam andar. Dos chuvosos recebia o aliviar da garganta seca e bons
cochilos ao entardecer.
Envelhecia
sem estar sozinho. Não era corcunda. Não deixava de dirigir. Não sofri com
grandes doenças embora necessitasse tanto dos óculos.
Desfiz-me
da carne. A carne não se desfez.
Agora sou
os pés que não andam, a boca que não fala, os cabelos que não se molham. Dos
meus olhos restaram as íris pálidas que nada enxergam, que nada veem.
Não sou uma
alma e nem tenho espírito. Aqueles que me tocam não me ouvem e também não me
enxergam mesmo tendo boa visão.
Sou a carne
enegrecida, os pedaços sobre as mesas de metal.
Não vivo,
não vago, não atormento.
Sou apenas
uma lacuna na existência: meu corpo sobrevive, mas todos sabem que inexisto.
KARINE FERNANDES
PRIMEIRO LUGAR DA I INTERMED LITERÁRIA
PAULISTA
SOBRAMES SP
CATEGORIA PROSA
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