06/10/2018

DESTINO DE FOCA



I
Foi despertado do torpor pelo som estridente da campainha. Respirava com dificuldade. Tentou mover-se, mas os membros não encontraram apoio e sentiu-se oscilando como um pêndulo. Uma dor excruciante dava a impressão de que sua cabeça estava sendo arrancada. Desesperado, abriu os olhos e levou as mãos ao pescoço; só então se avivou a lembrança do que tinha ocorrido.

II
Sempre agiu com retidão; intuitivamente, concebeu normas de conduta que convergiam para os preceitos de Ulpiano: “Viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que lhe pertence.” Viveu honestamente e foi vítima de toda sorte de esperteza, nunca prejudicou ninguém e viu-se maltratado até pelos que mais amava, empenhou-se em dar a cada pessoa o que lhe era devido e recebeu bem menos do que merecia. Desgostoso, alimentou o desejo de sumir do mundo.
Primeiro anteviu um desfecho heroico, morreria de arma na mão, levando consigo um punhado de políticos infames; porém foi demovido desse intento pela convicção de que, fazendo assim, beneficiaria a sociedade que o renegava. Indispôs-se então com a sociedade e passou a imaginar-se atentando contra a multidão. Finalmente, abandonou esse devaneio odioso ao concluir que o verdadeiro culpado era Deus, por ter criado a humanidade. Aprofundando a reflexão, lembrou-se de um documentário sobre as orcas; nele, uma foca era arremessada longe repetidas vezes antes de ser devorada. Vislumbrou nessa cena a metáfora representativa de sua vida e pensou: “Deus é a orca, eu sou a foca; brinca com meu sofrimento, tortura-me antes de acabar comigo! Julga-se todo-poderoso, mas não tem o poder de manter-me vivo se eu não quiser. Meu suicídio será uma desforra contra quem me criou para sofrer!”
Estava resolvido, diria não aos desígnios divinos pondo fim à vida. Por tratar-se de uma contenda com Deus, buscou inspiração na Bíblia: tal como Aitofel e Judas, decidiu enforcar-se.

III
Ficou perplexo ao constatar que ainda vivia. Na parede, o relógio atestava ter transcorrido quase meia hora desde que havia derrubado a cadeira sobre a qual se pôs de pé com o laço no pescoço. Pensava em fazer algo para apressar a morte quando sentiu um cheiro forte de fezes e urina; teve então um sobressalto, sem dúvida o fedor vinha dele. Não previu que o enforcamento podia causar incontinência das vísceras excretoras; ao matar-se, tencionava exibir uma dignidade socrática, mas como fazê-lo exalando a fetidez de dejeções? Perante seu bostífero cadáver, o asco se juntaria ao desprezo; não admitia passar por tal vexame, não admitia sujeitar-se a tanta humilhação, nem depois de morto. Decidiu, portanto, retroceder. Após árduas tentativas, convenceu-se da impossibilidade de desfazer o nó. A corda estava atada na coluna de um mezanino; pensou em usá-la para subir, porém se esforçou em vão, não lhe restava vigor físico para tanto. Julgou por fim que, balançando o corpo, podia alcançar uma pequena mesa e arrastá-la com os pés para perto de si; pôs-se a oscilar ao longo de arcos cada vez maiores e estava prestes a tocar o tampo do móvel, no entanto sentiu que o ar lhe faltava, pois havia retesado o laço quando tomou impulso. Largou-se inerte. O vai e vem da oscilação trouxe-lhe à mente a cena da foca sendo jogada de um lado para outro; buscando entender por que continuava vivo, concluiu que não decidia sequer quanto à sua morte e lançou ao Céu um pedido de clemência. Naquele instante, conformou-se com seu destino de foca.

IV
A encarregada da limpeza tocou a campainha insistentemente, ninguém atendeu. Tornou a fazê-lo algum tempo após e também não obteve resposta; decidiu então olhar através de uma vidraça. Nunca esquecerá a cena horrenda; quando seus olhos se acostumaram com a luz escassa e distinguiram o corpo que pendia no meio da sala, ela gritou.
Para surpresa de todos, o enforcado ainda vivia; o socorro chegou logo depois de ter perdido os sentidos pela segunda vez.

V
Com o entusiasmo típico dos que estão iniciando, a jovem médica falou:
— Foi um milagre. Ficou longo tempo pendurado com a corda no pescoço, mas está vivo e sem sequelas!
— Os milagres são filhos da ingenuidade, doutora; são justificativas dos tolos para aquilo que não sabem explicar — retrucou com ar professoral o cirurgião responsável pela enfermaria. — Houve época em que era comum o enforcado passar por demorada agonia antes de morrer; às vezes, o carrasco buscava abreviar-lhe o sofrimento tracionando vigorosamente suas pernas para baixo. Há relatos de condenados que sobreviveram e foram enforcados novamente. Ante a possibilidade de o criminoso permanecer vivo, algumas autoridades ordenavam que, depois de ser retirado da forca, ele fosse decapitado ou tivesse o coração extraído do peito. Coube à Medicina tornar o enforcamento mais eficiente, garantindo morte rápida e menos sofrida.
— O que disse? O conhecimento médico foi usado com intenção de matar?
— Por que a surpresa? Quem tem mais intimidade com a morte do que um médico? Dou-te como exemplo o doutor Guillotin, que persuadiu os revolucionários franceses a adotarem a guilhotina, máquina de matar que lhe eternizou o nome; esse piedoso médico possibilitou que milhares de pessoas fossem executadas de forma menos cruel, pois o enforcamento não garantia morte imediata e, dependendo da habilidade do carrasco, a decapitação por machado ou espada podia requerer vários golpes.
— Como os médicos contribuíram para tornar o enforcamento menos terrível?
— As recomendações versam essencialmente sobre o tamanho da queda e a posição do nó. Durante o enforcamento, a força imposta à corda deve ser aplicada de modo instantâneo e com intensidade que possibilite matar sem decapitação, poupando a plateia de ver a cabeça ser brutalmente arrancada do corpo; isso é feito submetendo o condenado a uma queda cuja extensão é ditada pelo comprimento da corda e pode ser inferida a partir de tabelas que levam em consideração o peso corpóreo. Por outro lado, estudos necroscópicos definiram que o nó deve ser posicionado sob o queixo, pois assim a cabeça é forçada para trás, resultando em fratura da coluna vertebral. É improvável que um suicida planeje seu enforcamento em conformidade com diretrizes cientificamente definidas; afirmo, portanto, que não houve milagre, teu paciente sobreviveu porque não teve competência para matar-se. Estás de acordo?
Com um meneio de cabeça, ela respondeu afirmativamente; porém as pessoas próximas ouviram-na sussurrar:
— Foi milagre sim, o Todo-Poderoso decretou que sobrevivesse...

LUIZ COUTINHO DIAS FILHO
PROSA VENCEDORA DO TROFÉU "O SABIÁ"
XXVII CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES

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