05/04/2014

A CAMA VOADORA

Visitando Nova Iorque, fui conhecer um famoso hospital. É um edifício de dez andares, com vários anexos, bem localizado na metrópole. O acesso ao hospital se dá através de um enorme saguão, uma sala de espera com Recepção e Setor de Internações de um lado, e do outro, uma cafeteria de primeiríssima classe. O saguão tem um pé direito descomunal. Porém não foi isso que chamou minha atenção. Pendurada do teto, presa a cabos de aço, havia uma cama hospitalar daquelas antigas, bem tradicionais, com lençóis e travesseiros alvos. A única diferença era que as pernas da cama eram mais grossas, aparentando tubos cilíndricos de aço. Presa à cama havia uma placa com letras grandes, bem visíveis do chão, anunciando: “A Cama Voadora”. Só faltava sair voando!
Imediatamente, lembrei-me do piano de cauda pendurado de cabeça para baixo no Tate Gallery, no bairro de Pimlico, em Londres e que assusta qualquer um pelo inesperado, pois seu teclado parece se soltar com um barulho estridente desagradável. Em seguida, cai a tampa do piano ao som aleatório de suas cordas expostas. Minutos depois, a tampa e o teclado se recolhem, para daí a dois ou três minutos repetir o processo. É conhecido como ‘Concerto para Anarquia’, da artista alemã Rebecca Horn.
A curiosidade tomou conta de mim e fui perguntar na Recepção do hospital o porquê da cama. A funcionária deu um sorriso e apontou para uma série de panfletos explicativos, em vários idiomas. Havia um em português, que passo a transcrever:
“A Cama Voadora (atualização – 2013)
“Em maio de 1970 deu entrada nesta Instituição um menino de nome Leonard, filho do magnata da indústria metalúrgica Paul George Gentiluomo. Este, por sua vez, tinha herdado sua indústria do pai, de origem italiana, oriundo de Milão.
“Leonard estava muito doente, com um câncer ósseo altamente agressivo. Os médicos ortopedistas e os oncologistas tentaram de tudo para evitar que o câncer se espalhasse, mas desde o começo sabiam que seria uma batalha perdida se não amputassem a perna direita do garoto.
“Ainda hoje existe um tabu em relação a amputações e não era diferente naquela época. Quando foi indicada, o Sr. Gentiluomo não aceitou e quis retirar Leonard do hospital. Um grande amigo dele o convenceu de que nossa instituição era um hospital de referência para estes casos, mas, mesmo assim, sugeriu que chamasse os melhores profissionais da área. Apenas um aceitou o convite, os outros não, alegando que Leonard já se encontrava nas mãos competentes dos médicos daqui. O oncologista não só confirmou a necessidade da amputação da perna, como achava que estava indicada a amputação da outra perna também, para melhorar suas chances de sobrevida.
“Inconformado com a situação, o Sr. Gentiluomo, o Paul, decidiu contar para o filho da cirurgia que teria de enfrentar. Internado havia três meses, o menino de sete anos já era querido por todos do hospital. Andava de muletas pela instituição, visitando pacientes internados, conversando com acompanhantes, injetando ânimo nos menos esperançosos e jamais falando da sua própria doença. Dava-se muito bem com a enfermagem, que o adorava.
“Seu pai, sua mãe e uma psicóloga foram conversar com ele. Deitado no leito, ouviu o veredito de que iria perder as duas pernas. Não chorou, apenas empalideceu. Perguntou se sentiria muita dor e, não querendo esconder nada dele, disseram-lhe que sim, mas havia medicações para minimizá-la.
“Leonard, sabendo que não iria mais poder andar, fez um pedido inusitado ao pai: queria uma cama que voasse. Paul prometeu que estudaria a sério o seu pedido. Sua mãe achou a proposta impossível, porém Paul a calou, reiterando que iria estudar a sua solicitação.
“O menino foi operado e ficou uma semana no nosso Centro de Cuidados Especiais, hoje conhecido como Centro de Terapia Intensiva. Neste interim, Paul voltou à sua fábrica e convocou uma reunião com o seu grupo de engenheiros. Explicou o que queria e pediu que no prazo mais curto possível apresentasse uma solução, sem medir custos.
“Os engenheiros vieram com a seguinte sugestão: colocariam molas hidráulicas nas quatro pernas da cama hospitalar que, acionadas eletricamente, dariam uma boa sensação de movimento, como se ela estivesse flutuando, levitando. Diante dos pés da cama, fixariam uma tela branca de grandes proporções e, através de retroprojeção, Leonard poderia viajar pelo mundo. Na época, já existiam muitos filmes e documentários, principalmente da National Geographic e da BBC que, tinham certeza, ele iria apreciar. Paul aprovou a ideia e partiram para a sua execução..
“Os médicos e a Instituição deram total aprovação ao projeto e, uma semana depois que Leonard voltou ao seu quarto, a cama foi trocada. Bem recuperado da cirurgia a que fora submetido e com pouca dor, foi-lhe entregue um controle para acionar a cama e a retroprojeção. Logo mais ele estava se deliciando com a cama voadora que viajava pelo mundo todo, inclusive pelos mares mais profundos.
“O garoto desenvolveu metástases pulmonares e não teve condições de ir para casa. A quimioterapia e radioterapia a que se submeteu foram deixando suas marcas, e ficou careca. Seu quarto estava sempre repleto de visitas que lhe traziam mimos de toda espécie. As crianças aproveitavam para também viajar na cama voadora.
“Leonard faleceu em 15 de maio de 1971, um ano depois da sua internação. Paul ficou impressionado com a dedicação de todos da nossa Instituição e resolveu fazer uma doação ao hospital, em nome de Leonard. Foi então construída uma nova ala, na verdade, um prédio de quatro andares, devidamente equipado com o que havia de mais atual na área de Oncologia Pediátrica. Impôs apenas uma condição: que a cama voadora fosse colocada em exposição permanente no saguão do hospital. Assim foi feito.
“Recentemente, a cama voadora foi recoberta com Ecoglas, um spray de vidro líquido que seca no ar, com uma espessura bem menor que um fio de cabelo. Produz uma impermeabilização que facilita muito a limpeza, não sendo mais necessária a troca dos lençóis e fronhas daquela cama, bastando passar um pano úmido para retirada do pouco pó que fica depositado.
“Durante todos estes anos, Paul tem mantido a Casa Leonard Gentiluomo com os equipamentos mais modernos para tratamento de câncer. Faleceu em 2012, vítima também de um câncer ósseo.
“Leonard e Paul serão sempre lembrados e a Instituição é eternamente grata por tudo que fizeram, sem querer nada em troca, a não ser a presença da Cama Voadora neste saguão!”.
Dobrei o panfleto com cuidado e reverência e o enfiei no bolso. Olhando para cima, vi a cama voadora com outros olhos. Juro que me deu a impressão de que estava prestes a levantar voo. Esbocei um sorriso. Sem sombra de dúvida, era um objeto diferente como lembrança desta família que recebeu tanto e também soube reconhecer e dar muito em troca, in memoriam de um filho perdido tão precocemente...
WALTER WHITTON HARRIS

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