23/05/2011

DECADÊNCIA E HUMILHAÇÃO

Eu estava em Uberaba, Minas Gerais, a terra da pecuária zebuína. A cidade é muito quente, o ar chega a tremer sobre o asfalto. A rua é larga, antiga, bairro apenas residencial. Às duas da tarde não se vê ninguém transitando. Parei o carro e minha mulher desceu para entrar na casa da costureira. Em vez de esperar no alpendre, preferi ficar debaixo de uma árvore frondosa, um grande fícus benjamim, onde o ar era mais fresco.
Ele chegou e também se abrigou. Puxou prosa.
- Hoje o ar “tá freveno”...
Olhei o rosto dele, vi um dente de ouro, achei-o meio conhecido. Dei corda na prosa, comentando o calor. Enquanto isto a lembrança me veio aflorando. Tenho boa memória para certas coisas. Acostumado com a etiqueta de Minas e o linguajar mineirês, cauteloso indaguei:
-Se mal não pergunto, como é o seu nome?
-Josias da Silva Moreira, seu criado. “Mais o pessoale” me conhece por Zia, Zia do Aristide.
Neste momento encontrei a chave que abriu a caixa preta das minhas lembranças de menino e rapazinho. Só por segurança perguntei se ele era de Santa Juliana, cidadezinha entre Uberaba e Araxá, onde me criei. Ele confirmou. Dei-me a conhecer.
-Te conheço muito. Sou filho do Pedrinho Dentista.
-Fíio Sô Pedrinho?! Dentista bão, ein sô? Esse dente de ôro aqui foi ele qui pôis. Que satisfação de conhecê o sinhôr. O sinhor é Jorval ou o Lencastro?
- Sou o Geovah, o Alencar é o mais novo. Sabe por que eu me lembro muito do senhor? Quando o senhor vinha tratar de dentes, me deixava dar umas voltas no seu cavalo. A meninada morria de inveja. O senhor era moço e eu ainda menino. Nossa diferença deve ser de uns quinze anos.
-Santa Virge, por onde anda o Sinhor? Mudou e sumiu. Adonde que o sinhor mora?
-Moro em São Paulo.
Feitos os necessários interrogatórios e colhidas as apropriadas informações, ficamos conversando, lembrando-nos dos tempos antigos. Depois de um bom bate papo ele se despediu e se foi rua adiante.
Enquanto aguardava, rememorei os tempos. Aquele homem tinha sido um dos heróis da minha meninice. Vinha de família de peões de comitiva, condutores de gado. Seu pai, Aristides, sempre passava na rua de trás, conduzindo boiadas. Prudentemente encarrapitado no nosso muro do fundo eu olhava o gado passar. O seu filho Zias era o ponteiro, ia na frente, chamando o gado, aboiando e tocando berrante. Era um cavaleiro ágil, esguio, imponente. Tinha sempre belos animais, sela campeira de primeira, peitoral de latão dourado, pelego, capa gaúcha, trela de cabo de prata com cuja tala produzia estalos como se fosse chicote de domador. Como um centauro, montado do amanhecer ao escurecer, só apeava para alguma conveniência. Agora eu o encontrara ali, a pé.
Aculturado com a vida rural, inferi que ele era mais uma das vítimas da nossa índole paternalista. O demagogo Getúlio Vargas copiou a Carta Del Lavoro de Mussolini, legislação própria para a Europa que se industrializava, e mais realista do que o rei, regulou o nosso campo pelas incompatíveis leis de trabalho na indústria, que aliás ainda nem tínhamos. Aquele homem tinha sido expulso da roça na leva do êxodo rural.
Mesmo urbanizado ele continuava vestido e ajaezado ainda como um peão de boiadeiro, talvez a roupa que lhe restara. Usava um surrado chapéu de aba larga, camisa xadrez de manga comprida, uma remendada calça folgada própria para montaria, um cinto largo parecido com guaiaca para se colocar coldre de revólver, botas esfoladas e descoradas, um pé furado e os saltos gastos.
Bronzeado, magro e rijo, mas já um tanto encurvado nos seus 55 anos, como um patético Don Quixote vestido de vaqueiro, cavaleiro desmontado de triste figura lutando pela sobrevivência, nada nele combinava com seu novo trabalho e com um olhar triste e desanimado empurrava um carrinho de picolé barato: água, açúcar e anilina. Em vez de berrante, tocava uma estridente buzina a ar.
Comovido e condoído, deu-me um nó na garganta e tive vontade de chorar pelo meu herói derrotado.

Geovah Paulo da Cruz

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