Para a Ellen
Pousou o trinta e oito de cabo de madrepérola, cano longo (um colt?), encima do balcão só como apoio, apontado para o barman, assim como quem não quer nada, como quem aponta uma prega de cortina ou outro ponto qualquer com o bico de uma tesoura ou de um bule de chá que por acaso estivesse na mão. Nada mais casual. Estava mais pra dona de saloon do que pra qualquer outra coisa.
Se havia chegado a esse ponto, era porque a hora de parar tinha sido cantada pelo cuco que a gente carrega mudo calçando o passo da existência. Sentiu que tomara a decisão. Era o momento, momento que se impunha, momento de fechar o Peregrino.
Asinhas de frango constavam da lista de petiscos do cardápio. Desde o começo. Antes mesmo, muito antes, de inaugurar o Peregrino. Quando foi parido, na mesa de outro bar, esse das asinhas de frango, aos goles de caldinho de feijão com cebolinha no frio congelante de Curitiba, não se imaginava o berço nem a trajetória. Muito menos o sucesso.
Entre uma asinha e outra, a roda de amigos egressa de bar em bar, nem sempre a música na altura certa que embalasse o ritmo das coisas sem abafar a conversa. Não se podia dançar de rosto colado até às quatro e a saideira era imposta pelas cadeiras antipáticas de cabeça para baixo, numa troça noturna de bêbados equilibristas. Tudo, enfim, sem aconchego. O que mais se desejava era um cenário adequado de acolhimento das agruras, desagruras e alegruras. Nada mais. Da vida com relógio marcando cada segundo, já chegava a semana.
Foi assim que ela idealizou e montou um bar de afinidades. Batizou-o Peregrino. No espírito, não todo espírito, é claro, um tanto Bagdá Café, em sua concepção brasileira, um oásis no deserto, num canto um piano meio bemol desafinado, no outro o dourado descascado de uma tuba encostada na parede, início e fim de expediente. No arco do teto, desde rolos de pastel e escorredor de macarrão, até um berrante que ninguém conseguia tocar, era um desafio explícito, muito menos acertar a embocadura. E para coroar o conjunto desses pingentes extravagantes e excêntricos, o monóculo que se dizia de Eça de Queirós, arrematado num leilão do cassino, à beira-mar, de Póvoa do Varzim, terra natal do pai do Padre Amaro.
As cadeiras tinham braços que abraçavam e convidavam a ficar mais, como sala de visitas de tias-avós com seus licores de jenipapo e biscoitinhos de araruta. Não eram aqueles sentantes que pareciam catapultas, tão logo chegava a conta, enfileirando fregueses no bar em andamento de linha de montagem. Um lustre de cristal da Boêmia só pra lembrar os anos 50 e as jaquetas James Dean, misturando o rock que nascia, o chapeuzinho Nat King Cole que abava e desabava e o baixo acústico dos trios de jazz com harmonias do Jobim. Até os abstêmios eram bem-vindos.
Logo virou point dos desgarrados da noite, dos intelectuais de cabeceira, dos futeboleiros de ocasião, das beldades siliconadas e não siliconadas, selecionadas por conteúdo, graça e espírito, pelos movimentos sensuais da dança e pelo brilho das frases completas que tudo tinham a dizer e pontuar, sublinhadas com a mais reta sobrancelha e o risco vermelho do lábio inferior sem fazer muxoxo ou biquinho. De casacos de pele ou pantalonas, não importa, coloriam o Peregrino das mais suaves e das mais escandalosas tonalidades ao gosto da alegria contagiante ou do toque cinzento de um traço de melancolia.
O local em que se assentou o Peregrino era lá pros lados do Rebouças, não muito longe da antiga fábrica do Mate Leão, muito antes de ser encampada pelo templo de uma dessas religiões carismáticas que abarulham, com seus sermões de alto-falantes, todo bairro e todo sábado, num raio que até parece de 100 quilômetros, despertando emoções truculentas de um conto de Dalton Trevisan, ressuscitando, boca a boca, a Boca Maldita do Centro Velho, com sua mordacidade mal disfarçada de quem não tem nada a fazer, senão envenenar a vida alheia com o cianureto da maledicência.
Fato é que a coisa deu certo. A convivência democrática do Peregrino abria palco para a declamação de um poema, mesmo que concreto ou só gestual, ou para um acorde de um violão de sete cordas na baixaria grave da introdução de um chorinho ou de um samba de lei. No mesmo dia, ainda a surpresa de uma peça de jazz para oboé, escaleta e reco-reco. Ou uma tímida sub-gerente do Banco do Brasil, sentada perto da janela, virando estrela de momento, incentivada pelos amigos de mesa, explodia, cantando Key Largo, reproduzindo os graves da Sarah Vaughan em suas melhores fases e em seu passeio sem esforço em escalas de dó a dó.
Abria, inclusive, às segundas, para atenuar a aspereza do degrau que as separavam dos domingos, para que não ficasse a impressão de um fim de semana esfacelado pelo retorno do cotidiano desfazendo o sonho, refazendo a ilusão de um mundo todinho feito da transubstanciação dos sentimentos, do gozo pleno, da celebração da beleza pura, da amizade eterna, do amor a cada segundo renovado apenas em sua sensação do sublime, sem horizontes de fim de ato, de dor crônica de cotovelo compondo sambas-canções envelhecidos pelo tempo, de novo, provisório. Peregrino, sempre Peregrino.
Mas nem tudo é riacho de águas claras correndo solto. Como poeira que vai se insinuando pelas frestas impregnando cada vão, cada espaço de taco do assoalho, cada ângulo de teias de aranha da cumeeira, cada ranhura de parede descascada, até ficar tudo meio acinzentado, no limite do espirro sufocante à procura de desafogo dos respingos da corrupção velada, da violência gratuita, do deboche declarado, da burocracia, da extorsão, da decadência moral, essa poeira inevitável também atingiu o Peregrino até o ponto de se correr o risco de não mais distinguir antiguidade de velharia, tradição de entulho, consistência de esfarelamento, dignidade de degradação, deslumbramento de banalidade, harmonia de caos.
Primeiro os fiscais, pretextando um atraso na liberação de um alvará da Prefeitura, culpa da própria Prefeitura com seus meandros inconfessáveis de mil instâncias e adiamentos. Outra vez era a multa pelo lugar exato de um extintor de incêndio supostamente mal colocado ou da localização de um ralo ou de uma lata de lixo. Ela gastou o que tinha e o que não tinha, o que lucrara e não lucrara para tentar satisfazer a gula insaciável deste dragão de tributos, até incorporar como rotina a bolada de reais para esconder na cueca, que molhava as mãos dos dignos representantes da administração pública como se fora uma arrecadação paralela legítima. Deixai nas portas do inferno qualquer esperança de regularizar alguma coisa!
Depois, as ações trabalhistas, uma atrás da outra, que não paravam de se materializar na figura dos oficiais de justiça, notificando horas extras que não tinham sido dadas, insalubridades inventadas e os mais variados argumentos que os advogados de porta de sindicatos são capazes de arquitetar, de olho na percentagem que lhes cabe como honorários, fruto de sentenças paternalistas, impondo acordos sem acordos para preencher a falta de tempo e de disposição de juízes sonolentos de ao menos ler o miolo de uma pilha interminável de processos, ações essas instigadas por ex-empregados beneficiados fraudulentamente com a dispensa por justa causa.
Pra complicar ainda mais a história, a dor de cabeça em que se transformaram os manobristas do serviço de valet com suas arrancadas de F1 com os bólidos a eles confiados, arranhões nas carrocerias por manobras desastradas, furos de pneus, para-choques e para-lamas amassados, roubos de objetos e agasalhos deixados dentro dos carros, vidros trincados, lanternas quebradas e toda sorte de prejuízos diários que tinham que ser ressarcidos aos bolsos dos clientes da casa. Reclamações de todo tipo.
Para culminar, o barman contratado não se sabe mais por indicação de quem e que, soube-se depois, tinha uma passagem breve e obscura, como lateral esquerdo, pelo rebaixado Paços de Ferreira, um time esquecido do campeonato português. Ao que se sabe, conseguiu uma dinheirama quando se transferiu para o Newcastle, do futebol inglês, envolvendo em maracutaias os cartolas dos dois times europeus. Saiu de lá poucos meses depois, corrido a pontapés e com fama de sociopata, após alternar semanas com contusões suspeitas e noitadas varando madrugadas nas baladas britânicas de scotch e cheiração, acompanhado de modelos de 2ª linha e de 3ª mão.
Pois bem, formando quadrilha com outros dois garçons, começou a fazer desaparecer da adega do Peregrino vinhos de rótulos caros que revendiam aos concorrentes com boa margem de lucro e a dar sumiço nos defumados de primeira, importados, trufas e toda sorte de especiarias, para desespero do chef e esvaziamento do estoque.
Descoberto, começou a desfiar toda sorte de chantagens e ameaças que ela, praticamente sozinha, sentia dificuldade de enfrentar, culminando com a tentativa de sequestro de seu filho adulto na rua já deserta, na hora de fechar as portas do Peregrino, no quase amanhecer.
Eram três, de máscaras de esquiador e capuz, saindo de repente de um pedaço de sombra para obrigá-lo a entrar no banco traseiro do carro, o banco clássico dos sequestrados.
Ela tinha ficado um pouco pra trás, fechando a porta do bar, sempre a última a sair. Viu de longe o filho sendo empurrado com violência, marchou firme até os assaltantes, enfrentando-os com a determinação de um xerife de Matar ou morrer ou de O homem que matou o facínora: Ou me leva junto ou solta meu filho. Daqui não saio. Podem ficar com o carro e com minha bolsa, no que a quadrilha obedeceu, não se sabe até hoje porquê, deixando os dois a pé, lisos, lívidos, mas milagrosamente vivos.
Desconfiou e teve provas depois, por uma dica de um amigo investigador, prata da casa no Peregrino, que o mandante era o barman e o jeito que encontrou de parar com as chantagens, furtos, violência e, de lambuja, conseguir despedí-lo sem compensações trabalhistas, foi pegar na gaveta da mesinha de cabeceira o cano longo, herança do pai, que lá estava adormecido, e pousá-lo no balcão, displicentemente, com seu cabo de madrepérola em recado de silêncio.
Foi a gota e a solução. Adeus monóculo de Eça de Queirós, berrante, aconchego, oboé e reco-reco. Fechou as portas para nunca mais. Sem custos trabalhistas. Peregrino, tchau! Até logo, goodbye, adeus!
Sergio Perazzo
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