22/03/2013

O ALISADOR DE AREIA


              Sou aquele cara que aparece de costas, duas vezes, na transmissão pela tevê da seletiva de atletismo da Jamaica, visando a classificação para as Olimpíadas de Londres. Estou empunhando uma espécie de rodo comprido e largo, alisando a areia da caixa que recebe a aterrissagem final de pés juntos dos atletas da prova de salto triplo. Sem a minha intervenção discreta depois de cada salto, os juízes não podem medir a extensão das marcas e os recordes não podem ser batidos com metragem precisa.
              Na pista ao lado, Usain Bolt, lenda viva, se prepara para a final dos 100 metros rasos onde, surpreendentemente, vai ser batido por Yoyan Blake, o novo ídolo dos velocistas. Tática de Bolt, correndo o suficiente para se classificar, se guardando para a final de Londres? Ninguém sabe nem tem como saber.
              Somos um batalhão de anônimos desconhecidos: o juiz que muda o suporte do sarrafo do salto com vara; a moça de preto com saia de faixas verde, amarela e vermelha, que carrega a bandeja de medalhas até o pódio; o funcionário que levanta o obstáculo de madeira plastificada que foi derrubado nos 110 com barreiras; o garoto que enxuga o piso sintético da quadra de vôlei ou amarra a rede do aro da tabela de basquete; o gandula que vai pegar a bola que passou raspando a trave direita; o moço que abastece de pó de magnésio o recipiente em que os ginastas mergulham as mãos para não escorregarem dos aparelhos.
              Somos nós que montamos o cenário das vitórias instantâneas que não duram para sempre. Nós duramos muito mais. Somos daquela raça de sobreviventes que resistem mais que um recorde olímpico turbinado de anabolizantes e patrocinado pela Nike. Ou pela Adidas. Não temos bandeira pendurada nas costas. Nossa volta olímpica termina no depósito de limpeza dos estádios, embaixo das arquibancadas, com cheiro de pipoca e cachorro-quente, sem qualquer ovação ou aplauso. Temos apenas a chave do cadeado. Nem chegamos a ser treinados para a vida, que dirá para a vitória, cujo sabor desconhecemos. A prova de nossa especialidade é o fracasso. Fracasso à distância. Porém, ser flagrado pela tevê alisando a caixa de areia é meu momento de glória que campeão nenhum pode me roubar. Mais amplo que um salto triplo. Os 15 segundos de fama a que todo ser humano tem direito no palco dessa vida, que seja com chavão melodramático.
              Esse mundo imerso em anonimato precisa de heróis, não é? Pois bem, eu sou o herói da vassoura, do rodo, do esfregão, do alisador de areia diante do altar dos deuses olímpicos. O anti-herói dá sentido àquilo que precisamos chamar de herói, de vencedor, de recordista. Faz jus à existência de medalhas. A uma coleção enferrujada de troféus.
              A certeza que já ultrapassou a intuição me diz que minha vida será sempre difícil. Caminho sem volta. Largada queimada ao som da pistola do starter. Sim, o mundo é feito para poucos, esse mundo inflacionado de desejos deixa pouca margem à esperança. Ao brilho do cume das coisas.
              Por isso sou perfeito alisando a areia. Quem sabe alguém está me filmando sem que eu saiba. Talvez eu vá parar no youtube que irá colorir o meu triste monólogo que já virou domínio da internet pontocom.
              Sim, sou aquele cara da caixa de areia do salto triplo, ao lado da raia do Usain Bolt quebrando recordes olímpicos para os olhos anônimos da arquibancada, onde eu também me dissolvo e desapareço. Mais um grão de areia na caixa do salto triplo. Vai ver, viemos do mesmo gueto. Do mesmo berço. Da mesma favela.
              Mas o Usain Bolt, mesmo perdendo a final dos 100 metros rasos, manteve a tradição de usar as sapatilhas uma única vez, feitas sob medida para seus pés de campeão, cores e desenho exclusivos. Em parte superstição, em parte solene desprezo pelas multinacionais, tripudiando o patrocínio. Cruzou a linha de chegada e ficou descalço enrolado na bandeira da Jamaica. Passou por mim ao lado da pista e me deu as sapatilhas ainda novinhas que eu calcei imediatamente, sorriso de orelha a orelha.
              Eu sou aquele cara que você viu na tevê, de sapatilhas de campeão, dançando abraçado ao alisador de areia em plena pista de tartan, atrasando a prova de salto triplo, os juízes sem poder cravar as marcas, no estádio superlotado.
              Sim, eu sou aquele cara atropelado de repente pelo trem de uma felicidade única e gratuita que não se repete na vida. A indescritível surpresa de um momento perfeito, calçando as sapatilhas velozes como o vento que cada um de nós sonhava calçar.
              Sim, eu sou aquele cara.

SÉRGIO PERAZZO
PRIMEIRA MENÇÃO HONROSA -  PRÊMIO FLERTS NEBÓ
2011-2012                                  

Um comentário:

  1. NESTE ESTILO EM QUE COLOCA A PESSOA DO AUTOR NO MEIO DO TEMA TRATADO DENTRO DO CONTO, SERGIO PERAZZO,ELABORA MUITO BEM A TRAMA DO ENREDO
    POR ISSO MANTEM (NOS) SEUS LEITORES ATENTOS DO PRINCIPIO AO FIM DO TEXTO.SERGIO É UM DOS EXCELENTES CONTISTAS DA SOBRAMES.CIRCULA EM MEIO DE OUTROS ESCRITORES QUE HABITUALMENTE TENHO PRAZER DE LER E OUVIR.PARABENS.LJORGE.

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