17/03/2014

A GUERRILHEIRA

Para as guerrilheiras
da América Central,
sempre e para sempre
guerrilheiras

            Os ossos não são mais os mesmos. Gemem o passar dos anos. Tempos de rastejar colinas. Desbravar o mato. Comer gafanhotos. Pensar ferimentos das longas marchas. Secar frieiras. Digitais em passaportes falsos, como em filmes de espionagem passados na peneira de suspeitas de oficiais das SS ou de sentinelas imberbes de bochechas rosadas da Europa Central no auge da Guerra Fria.

            Tempo clandestino. Tempo de fuga. Tempo das redes de informações que cobriam o mapa das fronteiras da Guatemala e que se estendiam pelas estradas de terra de El Salvador, Nicarágua e Costa Rica.

            No descanso da varanda sombreada de trepadeiras, algo desfiadas, no ângulo certo, num rápido momento, quase imperceptível, o sorriso de pedra de lábios cerrados, como que reconhecendo a reprise do mundo em sua monótona sucessão de atrocidades jamais superadas, em mais uma passeata de protesto e palavras de ordem massacrada pelo implacável poder constituído, algum dia destituído pelo apodrecimento dos anos.

            No mais, o sorriso sempre se suaviza, sempre é adoçado pela página do reverso da mesma história que transforma tragédia em anedota. Tempos heróicos. Tempos esquecidos. Tempos de alguma forma revividos.

            Por isso mesmo, é capaz de ser deixada só na periferia de um subúrbio qualquer de uma cidade desconhecida sem se perder, apesar da falta de bússola, guia, sextante ou GPS. Sempre encontra, sem medo e sem pânico, o caminho de volta. Sem senha. Sem codinome. Sem facão de mato abrindo picadas. Sem bandana prendendo o cabelo e contendo o suor da testa. Sem fieira de munição de metralhadora cruzando o peito à sombra de bananeiras.

            Ninguém diria, sentindo a luz que emana do seu rosto, que apagar qualquer brilho era o segredo de sobrevivência da sombra clandestina. Ninguém diria que a palma rude esculpida de calosidades rompendo as cordas de alpinista, fosse capaz do calor das chacras, da suavidade reparadora e da brisa etérea que emana de seus dedos de lavadeira.

            De repente, o que se ouve de sua voz não é um hino revolucionário, como, a princípio, se esperava, mas, sim, um cântico de exaltação da natureza, uma esperança silvestre resgatando o amor desgarrado, quase perdido, quase sequestrado, compondo um coro de ternura, à primeira vista incompatível com o matraquear cracracante e seco da luta armada, por uma liberdade apenas divisada, ceifando cabeças e membros ao redor e a esmo. Um cântico de entrega e desprendimento que transforma em causa a justiça social, muito além da própria morte. O impulso muito perto da loucura. Tal entrega muito perto da divindade. O ideal muito perto da determinação, da escolha e do acaso, juntando os retalhos de vida pessoal, de caminhos outros que a pudessem situar, por exemplo, numa faixa de areia à beira do mar ou num pico de neve no alto de uma montanha mais européia que asiática ou, quem sabe, na folha de uma tamareira na miragem de um deserto.

            Guerrilhas passam. Outras guerrilhas se fundam e se organizam. Planos de batalha são traçados na mesa mapeada de comandos, bandeirinhas coloridas espetando as posições do inimigo.

            Um dia vem que, pelo gemido dos ossos, o sorriso se suaviza com a reunião dos filhos deixados para trás e novamente recolhidos, aposentando a guerrilheira que, num vislumbre da claridade, reaparece entre as sombras da varanda. Entre as flores das trepadeiras, numa ciranda sazonal fertilizada pela chuva benfazeja do tempo e da história. Cochilar diante da violência recorrente dos homens? Nunca. Recostar-se entre tréguas do fogo das batalhas sem delas se tornar refém? Talvez. Deixar-se morrer? Jamais.


SERGIO PERAZZO
Texto Vencedor do Prêmio Flerts Nebó 2012-2013

                                                                                   

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