07/10/2018

OLHO DE ELEFANTE



“De Viena pulei para Berlim. Embora Buda tivesse apagado muitas das minhas sedes íntimas, não conseguiu extinguir a sede de ver o maior número possível de lugares da terra e dos mares. Ele me dera o que ele mesmo chamou de “olho de elefante”, a capacidade de ver todas as coisas como se fosse a primeira vez e saúda-las, de ver todas as coisas como se fosse a última vez e dizer-lhes adeus.” - Nikos Kazantzakis (1885-1957) - (“Relatório para Greco”)


Por muitos anos venho guardando lembrança da prodigiosa memória de uma amiga de meu pai. Amiga de circo.

O circo ocupou por semanas o terreno baldio próximo à nossa casa. Eu era bem pequena, e tudo era um deslumbramento. O circo chegava com estrépito, um desfile com artistas e animais pela cidade, música empolgante, a montagem da lona. Podíamos conviver com o dia-a-dia dos artistas. Víamos como eram feitas as cornucópias azuis de papel, com rendas e laços, cheios de doces, que eram vendidas à noite, no espetáculo, com canudinhos de amendoim, pipocas e pirulitos de tábua. Víamos também a higiene, a alimentação e o treinamento dos bichos. Eram boas pessoas, tratavam bem os animais. Aprendíamos sobre a vida nômade, nos “traillers” e tendas, como se arrumava a serragem e a palha de arroz, como se faziam as roupagens. Para a nossa surpresa, as crianças estudavam, freqüentavam escolas por onde passavam, e os pais acompanhavam seus estudos, assim como os treinos do circo. Assistíamos aos treinos, eles não se importavam. Bem sabiam que era à noite que a mágica acontecia: homens e mulheres comuns transformavam-se em palhaços, trapezistas, equilibristas, com roupas coloridas e brilhantes.

Era inverno. A temperatura caíra a menos de 5° C e o circo ficava próximo ao rio. Meus pais falaram com eles, as crianças menores foram convidadas a dormirem no quarto grande que eu dividia com minha irmã. Foi assim que me tornei amiga de uma garotinha de franja e cabelos lisos, que regulava comigo de idade. Ela contava histórias sobre o circo, e nós brincávamos muito. Minha mãe contava histórias à noite, mas de dia aproveitava para ensinar a nós duas português e matemática. Foi assim também que meu pai tornou-se amigo do dono do circo. Sempre achei meu pai, que era piloto, herói condecorado, muito fechado e sério, e foi uma boa surpresa vê-lo rindo, contando histórias, e até falando numa língua que eu não conhecia. Ele dizia apreciar a tenacidade da gente de circo, vencendo um desafio a cada dia. Assim os homens ficavam conversando por muito tempo, próximos à elefanta, que ficava numa espécie de dança, presa pela pata por correntes. Ela queria atenção. Meu pai levava amendoins, falava com ela, que se afeiçoou bastante a ele. Tento, agora, lembrar o nome da elefanta, mas só me lembro bem do seu olhar arguto, fixo. Perguntei a quem poderia me dizer, ninguém se recordou do nome dela. Vou, então, chamá-la aqui de Lia. O som desse nome parece-me ser o mais próximo.

Estudei os elefantes depois disso: que animais fantásticos! São os maiores quadrúpedes que existem. Neles, o nariz e o lábio superior vêm unidos, formando a tromba, com função olfativa, que serve para obter água, pegar objetos pesados como uma pessoa ou leves como um palito. São surpreendentemente delicados e preciosos. Lia era de origem asiática, talvez da Índia ou do Ceilão (“Elephas maximus”), uma fêmea (“aliya”, em cingalês) com mais ou menos sete anos, cerca de três toneladas, incisos curtos (presas de marfim), e problemas recorrentes de pele.

Parentes longínquos dos mamutes e mastodontes, os elefantes evoluíram sendo sociáveis. Às vezes vistos no Ocidente como símbolos de peso e lentidão, no Oriente o simbolismo é outro: força e potência (“mâtangi”), longevidade, prosperidade. Chamados “Ga-já”, são considerados as cariátides (suporte) do Universo, as montarias de deuses e reis, e também, por serem arredondados e de cor cinza, o símbolo das nuvens que trazem chuvas. Ganesha, o filho de Shiva, é representado na Índia com cabeça de elefante.

Várias lendas falam do horror dos elefantes a ratos (porque lhe roem as patas) e de sua prodigiosa memória. Nas aventuras de Simbad, o marujo, elefantes mostram ao caçador seu cemitério repleto de marfim, para que ele pare de persegui-los e mata-los apenas por suas presas.

Na Idade Média ocidental os elefantes foram associados à sabedoria, à temperança, à eternidade e à castidade, isso porque Aristóteles, séculos atrás, teria dito que eles se mantêm fiéis durante a prenhez de quase dois anos das fêmeas.

O circo voltou à cidade uns dois anos depois. Minha amiguinha havia crescido e treinava para ser equilibrista. O circo prosperara, lona nova, novos animais, números diferentes: globo da morte, cavalos, uma peça teatral...

Meu pai viajara, chegou no dia da estréia, quase na hora do espetáculo. Como de costume, trouxera livros e eu tive que insistir para que largasse deles e me levasse ao circo. Minha amiguinha se equilibraria na grande bola cheia de estrelas! Ficamos próximos ao picadeiro, e eu estava impaciente.

Depois de alguns números, o homem de cartola anunciou o elefante. Banquetas foram posicionadas, o elefante entrou em cena. Olhando bem, era uma fêmea. Olhando melhor ainda, que boa surpresa, era Lia! Que bom encontrar uma velha amiga, eu pensei, vou passear de elefante outra vez. Quando vieram os aplausos para a primeira parte do número, meu pai se levantou: “ – Bravo, Lia!”

E, de repente, ela  o olhou.

Parou de fazer seu número, levantou a tromba e barriu, um alto e estranho som que se sobrepôs à música do espetáculo, e deixou as pessoas em sobressalto, inclusive o domador e a moça de maiô laranja cintilante que já ia subir pelas suas patas. O que teria acontecido? 

Lia movia-se bem rápido para uma criatura tão grande, e avançava com toda determinação em direção às arquibancadas. As pessoas recuaram, cadeiras voavam nos camarotes, mas, subitamente, Lia parou, e, delicadamente, pôs a tromba no ombro esquerdo de meu pai. Coincidentemente ou não, ele estava com amendoins, e os deu a ela. Enquanto Lia pegava os amendoins, a platéia passou do pasmo ao aplauso. De pé! Meu pai sorria, e logo ela voltou sossegadamente ao picadeiro, e completou sua função.

Dessa vez, o circo não ficou tanto tempo na cidade. Estava quente, e a temporada prometia. Meu pai sempre ia lá para conversar, e agradava Lia com amendoins. Quis até comprá-la: minha mãe, irritadíssima, perguntou a ele se sabia o preço de um elefante e o custo de mantê-lo...

Quando o circo levantou lona e se foi, meu pai assistiu a partida da varanda, com seu cachimbo favorito, disfarçando muito bem a comoção. Passando por nós, Lia levantou a tromba e barriu, e só não voltou porque o domador a impediu. Mesmo assim, olhou para trás. 

— É a última vez que a vejo,- ele disse.

— Pai, o circo volta, -  respondi.

Tempos depois, um trabalhador contratado para uma empreitada na cidade contou no bar que havia ajudado a cavar o maior buraco que qualquer um já tinha visto, para um elefante morto. Então soubemos que Lia havia sofrido um acidente durante uma tempestade, tocando com a tromba um fio de alta tensão.

Como sempre, em horas como essa, eu e meu pai não dizíamos uma só palavra ponto. 

Compartilhávamos longos silêncios. Dessa vez, no entanto, brilhou em meu pai o “olho de elefante”, que pressentiu a morte da amiga e em seu coração lhe disse adeus.

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