21/04/2011

O TOM DA VIRADA

A contagem do tempo foi inspirada nos ciclos circadianos - nas rotas do sol, planetas e satélites. As variações climáticas decorrentes demarcam as quatros estações. Mas o que significa para o ser humano mudar de calendário? Afinal, a vida é contínua e não implica em modificações pré-determinadas.
Por que forçar uma repercussão do ciclo sideral na rotina de um terráqueo? Por que não deixar que a inércia se instale? É tão mais cômodo permanecer do que mudar...
Essas cogitações partiram de José que já contabiliza mais de setenta primaveras e não espera nessa vida o que já não houvesse experimentado. Nenhum propósito firmado para o ano que se inicia. Os amigos estavam escasseando. Vez em quando tinha notícia da partida de algum, rumo ao desconhecido, para nunca mais voltar. Começara a desconfiar que a fila avança e está chegando a sua vez. Então, não pretende precipitar os acontecimentos. Aguardará, de preferência, tentando distrair a atenção da indesejada.
No final daquele ano participou de uma festa com familiares e amigos mais novos, em todos os sentidos. Estava um tanto deslocado. No salão, havia uma mesa de bebidas. Absinto foi o rótulo escolhido. Tomou de um cálice e o encheu com o líquido esverdeado. Sorveu-o em pequenos goles, para não sentir o ardor provocado pelo alto grau de álcool, contido na bebida. Lembrou que os artistas da antiguidade usavam o absinto em busca de criatividade.
A estranheza experimentada demorou curto espaço de tempo durante o qual sua vida pareceu tomar um rumo impróprio ao programado. Dirigiu-se à sala vizinha que funcionava como biblioteca. Passeou os olhos pelos livros arrumados de modo aleatório numa estante antiga.
Instigado, consultou um dicionário. Absinto - erva aromática dotada de propriedades amargas; bebida alcoólica preparada com as folhas dessa planta; figurativo – pesar, mágoa, amargura; etimologia – ab, do latim; prefixo que significa afastamento, separação, privação, excesso ou intensidade; - sinto; verbo sentir, primeira pessoa, presente do indicativo, oriundo do latim; expressa ação de perceber, por meio dos sentidos; ser sensível a; pressentir, supor, conjeturar, modo de ver, entender.
Enquanto buscava enquadrar na informação obtida o que sentia, percebeu na prateleira mais alta do móvel, aquele retrato em preto e branco, que veio a perturbar sua concentração. A foto representava um par de adultos jovens, capturados pelo flash de uma câmara fotográfica, no decorrer de um baile. A julgar pelos trajes, registrava a valsa comemorativa da conclusão da vida universitária.
Ele, com um ar de quem ri à toa, estava curtindo a alegria da missão cumprida. O semblante da dama porém aparentava o contraponto de uma tristeza profunda. Uma pena que ainda não se inventou uma máquina que fotografe também pensamentos. Anos depois de uma ocorrência gravada em imagem, todas as afirmações não passam de meras conjecturas.
Oriundo de uma cidade sertaneja, onde poucos têm acesso à universidade, José se identificou com a cena. Desafiara a inóspita capital e conseguira transpor o obstáculo maior de um vestibular disputado com colegas que tiveram uma oportunidade mais favorável para a construção do saber. Na segunda tentativa, ele conseguiu ser aprovado e cinco anos após, festejaria o ritual de passagem para um desafio ainda maior, o de firmar um nome como profissional de referência, para uma clientela exigente.
Aquele olhar parecia acompanhá-lo e o convidava a visitar lugares inexistentes, no mundo dos mortais. O que será que a câmera fotográfica fora incapaz de captar naquele instante? Sentindo-se impotente para desvendar esse mistério, José evitou dar asas à imaginação. Voltou para o meio turbulento da sala contígua onde a música alta e o burburinho o impediria de pensar. Sentiu que estava sendo observado. Apesar da timidez, chamou para dançar a mulher que atraiu sua atenção. Puxou conversa e encontrou afinidades. A aparência exótica deveria ser reflexo das suas próprias particularidades. Resolveu investir no desafio e pediu referências para renovar contato.
Foi crescente a vontade de estar junto. Encontros fortuitos levaram a carícias fugidias. Intrigava-se ao associar o olhar enigmático da foto com o subseqüente encontro que o levou a conhecer a nova amiga. Na verdade parecia que se conheciam há séculos. Mas José resistia a entregar-se. Estava sempre assegurando-se de que eram apenas acompanhantes recíprocos, a exorcizar a solidão. Não dá para saber o fantasma que o assustava. O amor talvez. Quem há de saber?
Porém, na vida, surpresas acontecem. Novos modelos de relação se formam. Um dia, sem que a amiga esperasse, José fez uma cópia da chave de casa e lhe entregou. Emocionada ela retribuiu o gesto. Só depois se deu conta do simbolismo do gesto praticado. As chaves trocadas eram alianças. Um pacto de cumplicidade se firmara. Com vistas a explorar uma maior intimidade, partiram a bordo de um navio, para uma ilha no meio do oceano.
E foram felizes, sem contar por quantas viradas de calendário.
Maria de Fátima Calife Batista

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