09/06/2011

A MÚSICA DE MÔ

Trabalho em um ambulatório de Saúde Mental e, por várias razões, este é um dos serviços mais gratificantes de que já participei. Os pacientes são um desafio constante: há pouco tempo para atendê-los, a demanda é grande. Quem já trabalhou no sistema público de atenção à saúde sabe: são muitos os papéis a serem preenchidos, é preciso prescrever em diferentes receituários, atender acompanhantes que ajudam ou atrapalham, pacientes que chegam algemados com escolta, perícias, laudos, pacientes chorando e em crise. As psicopatologias freqüentemente são acompanhadas do comprometimento da fala e da comunicação. Existe a ala dos semiinternos, que ali circulam, uns gemendo, outros teimosamente sentando-se no chão, quase todos querendo conversar. Há muita dor e sofrimento, os olhares e gestos o revelam.
Quando comecei a trabalhar tive uma boa surpresa: a música de Mô. Com um violão velho Mô fazia festa, tocando e cantando. Os pacientes gostavam, cantando também, e até tentando uns passos de dança.
Um dia o violão de Mô quebrou. Parece que alguém esbarrou ou pisou nele, essas coisas que ninguém fica sabendo ao certo. Mô passou a ser a imagem da tristeza. Antes, quando passava pela janela da sala onde eu estava dando consultas, sempre dizia: “Majestade”. Era a sua forma gentil de tratar algumas pessoas. Mas depois que o violão se foi, ele ficou acabrunhado, pelos cantos, irritadiço, caladão.
No final do ano nós participamos de uma linda festa de encerramento, com a presença dos pacientes, funcionários, o gestor e o prefeito. A comida estava excelente, obra de Sílvia, Quelli, Tânia e equipe, que se desdobraram mais de dois dias para que tudo desse certo. Os acompanhantes e familiares dos semi-internos vieram e todos pareciam muito alegres no almoço, menos Mô. Sorria um pouco, mas não era mais o mesmo.
Lá pelo meio da festa alguns pacientes queriam servir-se de qualquer maneira e minha atenção se voltou para eles, mas sem maiores preocupações, porque, silenciosa e eficientemente, Abel e os rapazes sempre sabiam o que fazer.
Então, repentinamente, um murmurinho, um ruído de passos, e uma clareira foi formada em meio à gente que se comprimia e circulava na sala principal. Ouviram-se aplausos: estava sendo entregue um violão para Mô, novinho em folha! A início ele não conseguiu mostrar alegria, de tão espantado.
- Ora, não fique aí parado, cante para nós – pedimos.
E o resto da festa foi um encantamento. Ficou por conta da música de Mô.

Alitta Guimarães Reis

Um comentário:

Agradecemos sua atenção. Se possível deixe informações para fazermos contato.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...