07/10/2011

REMINISCÊNCIAS DO MESTRE AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA

Aurélio Buarque de Holanda é alagoano? Ele produziu obras literárias além do dicionário que o celebrizou? Estas perguntas têm sido feitas fora do Estado e eu tenho explicado o orgulho de Alagoas ter sido o berço do imortal Aurélio e repetido o nome das obras literárias que produziu. Sobre o dicionário sou sempre enfático. Estima-se que um em cada seis habitantes do Brasil tenha em casa, pelo menos, uma das versões do dicionário de Aurélio Buarque de Holanda. Líder de vendas em seu segmento, durante muitos anos foi um best-seller nas livrarias, somente perdia fôlego para a Bíblia, que é nada mais, nada menos, o livro mais vendido no mundo. Lançado em 1975, foi publicado após cinco anos de trabalho em equipe, coordenada por ele e por D. Marina, sua esposa. A obra foi a concretização de um antigo sonho do autor, que, desde menino, demonstrou paixão pelo significado e pela origem das palavras.
Poeta, crítico literário, contista, ensaísta, tradutor, professor e lexicógrafo, caracterizaram as várias fases de sua vida.
Como conheci Aurélio Buarque de Holanda?
Na década de 60, meu irmão, Rui Medeiros, jornalista e escritor, trabalhava no Diário de Notícias, Rio de Janeiro. Naquela época, eu estava realizando especialização no Rio e costumava ir, à noite, ao jornal, para esperar o mano que trabalhava até às 22 horas. Na sala da redação do jornal tive a felicidade de conhecer nomes destacados da literatura brasileira: Aurélio Buarque de Holanda, José Lins do Rego, Otto Maria Carpeaux, Rachel de Queiroz e Álvaro Lins. Eles se reuniam, todas as quintas-feiras, para elaborar o caderno cultural do domingo.
Durante a década de 70, período em que assumi a Pró-Reitoria Comunitária da UFAL, realizamos várias jornadas culturais. Mestre Aurélio participou de três delas. Quando o convidei, pela primeira vez, ele me respondeu com outra pergunta. Não pode ser no final de novembro? E explicou: “todos os anos gosto de passar um mês de férias em Maceió. Nessa hipótese, junto o útil ao agradável”. Assim foi feito. No final de uma dessas jornadas, o então Reitor Manoel Ramalho designou-me para representar a UFAL, num encontro de folclore em Laranjeiras (SE); Mestre Aurélio era um dos convidados especiais do evento. Durante o percurso, de automóvel, deliciei-me com a exuberância de sua cultura. Ora recitava poemas, ora trechos longos de escritores portugueses e brasileiros. De Carlos Drummond de Andrade a Cecília Meirelles, de Machado de Assis a Eça de Queiroz, ele discorria de memória. Contou-me Dona Marina que “ele sabia de cor todos os versos de “Os Lusíadas”, de Camões. Mesmo nos últimos anos de vida, já vítima do mal de Parkinson, ele me pedia que dissesse a primeira estrofe para dar prosseguimento ao restante do conteúdo”. Uma extraordinária memória.
Do festival folclórico de Laranjeiras, relembro fatos curiosos. Estávamos na praça assistindo aos folguedos e nos acompanhavam minha esposa e minha filha Morgana. Aproximou-se de Mestre Aurélio um casal, e o homenzinho, meio feioso, de terno e camisa colorida, teceu elogios ao dicionarista. Dizia: “é o maior escritor deste século, um dicionarista nunca igualado, mestre dos mestres, bem merecia participar de uma academia mundial”. Senti que Aurélio não estava gostando; de sorridente, caiu no mutismo. E o homenzinho continuava... Talvez, a título de conclusão, saiu-se com essa: “Vossa Senhoria é um desses homens após cuja aparição descansa, talvez séculos, esgotada a natureza”. Nesse momento, Aurélio abriu um sorriso: “pois bem, meu amigo, você disse tudo isso de mim, eu agradeço, mas eu troco todos esses elogios por essa morena bonita que está acompanhando você. Vamos fazer a troca?” Rimos a bandeiras despregadas. O homenzinho desapareceu.
Como já afirmei, assistíamos, na praça central da cidade, exibições de manifestações populares folclóricas. Morgana, minha filha, com cinco anos de idade, passava do meu braço para os de Rosa, na tentativa de melhor aproveitar o espetáculo. Aurélio Buarque de Holanda, ao nosso lado, sempre gentil e afável, pediu permissão para colocá-la no ombro, assim permanecendo até o final do espetáculo. Todas as vezes que relembramos esse fato dizemos que Morgana esteve bem próxima de um dos cérebros privilegiados do planeta.
Aos 27 anos, ele já participava da vida cultural alagoana. Carlos Heitor Cony contou, em entrevista, que possui uma fotografia (de 1930) em que aparecem os seguintes escritores, reunidos em Maceió: Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Gilberto Freire e Manuel Bandeira. É um sinal de que havia uma grande efervescência cultural em Maceió, nessa década.
Uma data significativa merece ser rememorada. Em 1961, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Frisou em seu discurso de posse: “Sou escritor da província e minha maior glória é entrar para a Academia”. O governo de Alagoas doou o fardão tradicional da Academia.
Para uns, era o Sherlock Holmes das palavras; para outros, o psicólogo das palavras, uma galáxia de palavras. “Tinha a alma das palavras, a vida das palavras, e, por isso, conseguiu traduzi-las de forma universal”.
Das muitas definições sobre essa personalidade destaco a opinião do poeta Ledo Ivo: “Aurélio Buarque de Holanda amava as palavras. Amava-as como se elas fossem mulheres – e mulheres nuas, que se levantavam de suas camas imaginárias, vestiam-se de luz e sombra, caminhavam ao seu encontro, distanciavam-se, juntavam-se e bailavam. E cantavam. A vida inteira ele escutou o canto interminável, vindo de todos os lugares: dos grandes dicionários de seus antecessores, do vasto arsenal linguístico e literário que convertia a sua biblioteca numa verdadeira ilha de tesouros, especialmente da boca do povo, o mestre supremo da linguagem”.
Aurélio Buarque de Holanda jamais esqueceu sua terra e sua gente. Amava Alagoas, tinha muitos amigos no Estado. Sua permanência entre nós era sempre uma festa. Amava a comida regional. A alagoanidade nunca perdida fazia parte de seu genoma existencial. Jamais será esquecido pelos contemporâneos que o conheceram, pelas obras literárias que produziu, pelo Dicionário que se tornou propriedade da família brasileira.
Ao passar para a dimensão espiritual seu dicionário tornou-se o companheiro de todos aqueles que utilizam a escrita e que passaram a tratá-lo com a maior intimidade e carinho: traga o Aurélio, consulte o Aurélio, veja o Aurélio.
Nossa homenagem recordativa. Imperecível. Mesmo, porque, acredito sempre, que o verdadeiro túmulo dos mortos é o coração dos vivos.

José Medeiros (Presidente da Sobrames Alagoas)
Terceiro Lugar - Concurso Literário Categoria Prosa
XI Jornada Médico-Literária Paulista 2011

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