10/10/2011

UM FORASTEIRO EM TRÂNSITO POR IGUAPE

De São Paulo pra Santa Maria, Rio Grande do Sul, resolvi pousar em Iguape, cidade de romarias2. Alguém me contara de sua folclórica; lá, o estranho ganha apelido em menos de 24 horas. Prova disso...
Caixeiro viajante apostou que ali passaria o dia inteiro sem alcunha. Cedinho, sem chamar a atenção, chegou à hospedaria e não saiu mais do aposento. Limitou-se a abrir a porta, chamar o boy.
 Garçom, o café! ao meio-dia: ...  o almoço! à noite: ...  minha ceia!
À manhã seguinte, antegozando vitória abriu a porta pela última vez:
 Garçom, minha conta!
Do empregado para o proprietário:
 Patrão, comanda p´ro cuco!
... ... ...
Caminhava só. Costa litorânea iluminada pelo luar. À curta distância, velho pescador sentado na carcaça de canoa; cabisbaixo, solitário, costas para a praça do mercado. Aproximei-me de manso, passos que a areia encharcada abafava. Não sei explicar como percebeu minha aproximação. Sequer meneou a cabeça, exibiu-me a mão aberta. Marcada - a palma - por estrela de reflexos faiscantes. Tatuagem ou não, impressão permanente! Sem chegar a me encarar, deitou falação.
 Vosmicê pódi num dá fé d´istória de pescadô. Acuntecêo quandu mi´a cumpanhêra mi dexô suzinho.
Pausou, como que a reler papel amassado... a página, candente, da sua vida. E continuou.
 A noite era linda di extasiá. Ergui d´areia istrelinha-du-má. Sinti ela fria, iguá qui´eu, que quis dá vida pr´éla. Pru mór dela sobrevivê calentei ela coé´sta mão, sem pará di fazê rêdi co´a´ôtra. Intão, istrêla-du-má perdêo frieza, calentô! Essa mão também garrô di´ardê, quár brasêro, inté queimá!
Seu olhar... fixado na mão aberta.
 Dirrepenti, num pé-de-vento escapô da mi´a mão. Ind´um tempu ficô postada diante d´êsti pescadô, cheia du brio i da graça. Na lufada siguinti, subío, deitano risca nu céo, comu essas´istrela qui vosmicê  hóme das letra , chama cadenti. Di´olhá pr´éla, cegô mêos´zóio, a istrelinha-du-má qui ans´sim mi marcô, éssa mão qui vosmicê´stá inchergandu.
Silenciou como se a revisse. Arrisquei perguntar-lhe por que não dirigir os olhos para o céu... reencontrar o bem perdido... Ao que respondeu:
 Num carece, sêo dotô. Êssis´zóio, inda qu´inturvadu, é capáiz di riconhecê´ela in quaqué cantu du céo´istreladu, maiz´essa mão não arcança maiz´ela..
E completou.
 Incontrô u´ástru cumpanhêru.
Cabeça para a areia, cerrou a mão, estrela escondida...
Afastado alguns passos, curioso, voltei-me. Para indagar-lhe do nome. Ou para esticar a prosa intrigante. Porém...inexplicável! Praia erma! Nenhuma criatura!
De volta à praça, deparei com a roda de notívagos moradores  cartorários, professores, advogados, pecuaristas , seletos iguapenses, aos quais narrei o estranho encontro. Ouviram-me sem interrupção. Entreolharam-se. No povoado não conheciam ninguém com o sinal. Pesca tornara-se industrializada; artesanal, já não existia; tampouco destroços de canoa. Perguntou-me, um, se estava cansado da viagem, outro [respeitosa delicadeza], se sofrera queda da pressão junto ao mar. [Como se meu passado, minha alma, minha ancestralidade, não exibissem salpicos sul-atlânticos, santista que nasci no litoral mais acima].
Desconcertado pelo descrédito, participei por algum tempo da roda, tratando de ouvir mais do que falar, atento às expressões idiomáticas castiças e ao sotaque regional mesclado de brasil-sulino.
Passava da meia-noite, despedi-me, deixando-os entregues aos comentários a meu respeito, ciente de que hábitos provincianos requerem a intriga com que exultam.
A caminho do pouso, repensava a história do homem caiçara. Deitei-me exausto.
... ... ...
... pescador... sua estrela... o fascínio do Mar Pequeno da manjuba... do espelho de areia... do véu noturno sobre as águas... o velho que identificava sua estrela, mas não a alcançava. Eu... zzzzz... preso ao com...zzzzz pro... misso matrimonial zzzzzzzzz teria tido, por acaso, igual visão estelar? Zzzzzzzzzz... ... ...
... ... ...
Ao acordar à manhã pulei da cama para retomar a viagem. Espalmei as mãos. Alívio, não tinha estigma!
... ... ...
Ainda se lembra? do forasteiro? do apelido? Como seria o meu? Mão de xerife? [xerife sem estrela, não é xerife]; mão-de-cabelo [a entidade sobrenatural]?
Teria quebrado o recorde do caixeiro viajante? Sei lá!

Arary da Cruz Tiriba

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