26/03/2018

A FILHA DO CHEFE DA ESTAÇÃO


por: SÉRGIO PERAZZO
Vencedor do Prêmio Flerts Nebó - Melhor prosa de 2016/2017

Acontece que choveu. Bem na hora de atravessar a rua, desesperado por um cafezinho de meio de tarde. Como tinha esquecido o guarda-chuva em casa, fiquei experimentando a água que pingava dos telhados e das folhas das árvores, avaliando os pingos um pouco mais grossos que uma cortina de garoa. Calculei que três quadras, ida e volta, seriam suficientes para encharcar o cabelo e escorrer um riacho pela gola da jaqueta no arremate do pescoço, o que era um tanto temerário para quem já sentia na promessa de coriza uma gripe incubada ou o exagero de uma pneumonia galopante. Ainda por cima, era uma chuva gelada de causar calafrios, chuva de início de inverno, nada bem-vinda como águas de primavera, que fornecem  matéria-prima para o florescer dos bons-dias e o adormecer macio dos boas-noites trocados em sussurros, a cada esquina, com cada transeunte tornado cúmplice.

            Por isso não fui. Faltei ao encontro comigo mesmo, se quiserem entender assim. Me recolhi para dentro, para o conforto da sala aquecida e atapetada de mim mesmo, convidando jogar conversa fora e calçar chinelos de lã, como que atendendo ao chamado de um sino. O sino de bronze da estação de trem de uma cidade pequena do interior de Minas. Maria-fumaça, metade passageiros de chapéus de palha, metade carregamento de minério de ferro, qual Itabira,  qual arrumação poética, um pé em cada degrau, um Drummond em cada estrofe, toada de trem chiando em cada partida, soluçando vapor e fumaça pela chaminé em cada despedida. Cuspindo fogo pela fornalha, tal qual besta-fera e dragões de contos de fadas e de romances de cavalaria.

            E assim atendi ao chamado deste sino imaginário e embarquei no lusco-fusco da memória para aquela praça, deserta aquela hora, você sentada no banco me esperando como se estivesse estado sempre ali, um marco de pedra em sua própria homenagem, a filha mais nova do chefe da estação de trem, imune aos trilhos reluzentes, aos dormentes rabugentos, ao sino de partidas e chegadas juntando passageiros atrasados e dispersos.

              O dedo fazendo caracol em seus cabelos, um gesto tipicamente seu, escarafunchava pensamentos, reorganizava sensações, alisava sentimentos que apenas não retornariam  mais, por mais que se tentasse remover a grossa camada de poeira acumulada, tanto tempo depois, como se tivéssemos transformado as coisas do coração numa espécie de arquivo morto. Mas seu gesto ficou numa imagem cristalizada e assim permaneceu em mim, intocável e sem retoques.

            A verdade é que aquele namorico de julho foi feito para durar uma semana, não mais. Só não era totalmente platônico porque era correspondido no mesmo tom de timidez e devoção, depois do que eu voltaria para a cidade grande e nos perderíamos nos imprevistos previsíveis da vida. Previsivelmente. Ficou o carimbo de um beijo no rosto. Ficaram o vestido verde e os joelhos juntos e recatados. Ficou a farda azul-marinho com botões dourados e o quepe afrancesado, de gendarme, de chefe de estação, do seu pai, fantasma de carne e osso que rondava por ali, supremo monarca e dono do sino de bronze, guardião do tempo na passagem de cada trem, senhor do vento e dos destinos, com um sorriso complacente de rosto a rosto, flagrando a filha de catorze anos com seu primeiro namorado, um pequeno susto esbaforido não querendo intromissão, quase um pedido de desculpas, passando ao largo como se nada tivesse visto e testemunhado.

            Num tempo e lugar de paixões latinas e boleros, Armando Manzanero, seu compositor-rei me dizia, cantando, que contigo aprendi a ver el otro lado de  la luna e, nada, definitivamente, nada,  desfazia o encantamento. Pelo contrário. Cada detalhe compunha um cromo, uma aquarela a enriquecer cada traço de um momento, só definido pela intensidade de quem estava ali sem nenhuma pretensão além de viver este ali, de gravar na memória aquilo que não mais se repete, a reboque do trem, sumindo no túnel, na curva, no balanço das horas, na rabeira dos vagões, você enrolando seus cabelos, me esperando num  banco de praça pintado com propaganda da farmácia ou do armazém, perto da plataforma da estação, do lado de lá da Matriz, o sino retinindo, convidando ao embarque imediato na quinta dimensão do tempo, encerrando a longa espera entre farrapos de conversas e acenos brancos de lenços de cambraia passados a ferro, goma e saudade.

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