16/12/2019

ACIDENTE DE TRABALHO



Por: Mario Name

No ano de 1965, recém-formado, fui para a Santa Casa de Santos para fazer minha Residência em Cirurgia Geral. Completado o primeiro semestre e não obtendo os resultados que pretendia, fui convidado para ser Médico Interno da Santa Casa de Campinas. Medico Interno era o médico, solteiro naturalmente, que residia dentro do próprio hospital e atendia às urgências de todos os pacientes internados e os que chegavam no pronto-socorro do hospital. Hoje não existe mais essa categoria de médicos que foi substituída pelo médico plantonista.
        
A Santa Casa de Campinas tem um hospital anexo, que interna apenas pacientes particulares e de convênio, cujos lucros se revertem em beneficio da própria Irmandade. Este hospital foi inaugurado em 1935 e construído por três beneméritos da cidade, cujo sobrenome dá nome ao hospital: Hospital Irmãos Penteado.
        
Tive muita sorte, pois o colega que me antecedeu, excelente profissional e a quem devo minha formação, foi meu orientador, isto é, quem me ensinou a usar mãos, cabeça e coração. Naquela época ainda existia a figura do indigente, isto é, aquele que não tinha convênio, previdência ou qualquer direito que lhe garantisse assistência médica senão as Irmandades de Misericórdias e/ou hospitais públicos (raríssimos à época) nas cidades do interior.
         
O pronto-socorro da Santa Casa ficava localizado no corpo do Hospital Irmãos Penteado e, por essa razão, era frequente pessoas não indigentes serem atendidas ali sem, entretanto, remunerar o trabalho médico e os gastos hospitalares.
         
Não havia uma triagem, uma recepção administrativa entrada do pronto-socorro, isso ficava por conta do próprio médico-interno.
         
Certa ocasião, lembro-me que era noite alta, adentrou ao consultório uma paciente de ótima aparência, bem vestida, toda empetecada de joias, maquiada à maneira de quem vinha de uma reunião noturna.
         
Após minuciosa anamnese e concretizado o indispensável exame físico, não foi difícil fazer o diagnóstico: a paciente estava em franco processo de abortamento, com metrorragia moderada apesar do bom estado geral. Perguntei-lhe, então, enfim, quem seria a pessoa responsável por ela, se havia algum convênio etc.
         
Ela apenas me respondeu que não tinha convênio. Insisti na pergunta, já que não se tratava de uma indigente, por motivos óbvios e, após alguma delonga, ela afirmou apenas que trabalhava na "Casa da Alba", um dos prostíbulos mais conhecidos da cidade.
         
Disse-lhe que alguém teria de arcar com as despesas, já que teríamos que fazer transfusão de sangue, curetagem, anestesia etc. e teria que interná-la nos próprios do Hospital Irmãos Penteado e não da Santa Casa. Ao que, prontamente ela respondeu que eu poderia ligar para a "dona da casa" porque na Santa Casa ela não ficaria.
         
Liguei para o telefone que paciente me forneceu e pedi para falar com a "dona da casa", que me respondeu com agres­sividade, perguntando-me, afinal, se não era do Pronto-Socorro da Santa Casa. Disse a ela que sim, mas, no caso em questão, tratava-se de urna funcionária dela, e que, por essa razão, estava caracterizado um Acidente de Trabalho.
        
Depois de outras delongas e não querendo me expor demasiadamente, disse-lhe que faria o que fosse necessário para o tratamento, mas que o fato seria comunicado ao Departamento Jurídico da Irmandade no dia seguinte para as providências neces­sárias. 

No mesmo momento a "dona da casa" perguntou-me quanto seria a despesa e mandou o numerário através de um motorista de táxi.
        
Esse foi o acidente de trabalho mais pitoresco que conheci em toda minha vida de médico. E foi um indigente a menos...


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