05/10/2011

CONTRATENOR

Primeiro sinal. Teatro lotado. Os músicos da orquestra se posicionam no palco, afinando os instrumentos. No camarim, Henrique aquece a voz, ansioso por sua estreia como solista. Nem acredita que, aos vinte e cinco anos, irá realizar seu sonho.
Desde pequeno, destacara-se no coro da Igreja, alcançando tons agudos que ninguém mais conseguia. Os fiéis diziam que até os anjos paravam para escutá-lo. Com o tempo, o que se considerava divino passou a incomodá-lo. Veio a puberdade, e sua voz não engrossara. Ao conversar, seu timbre soava agradável. Mas quando cantava, porém, parecia uma menina e isso o envergonhava.
Henrique, então, começou a se esquivar das missas, a faltar aos ensaios, inventando mil desculpas. Temia que os amigos caçoassem dele. Tinha medo que pensassem que ele era "bicha". Pior ainda, receava que, se desenvolvesse a voz feminina, ele próprio se tornaria gay. Tentou esquecer a paixão pela música. Mas, sem ela, até mesmo o entusiasmo nos jogos de futebol era efêmero.

Segundo sinal. Bebe meio copo de água mineral. Termina a leve maquiagem que a importância do evento exige. Um blush acobreado realça o charme másculo das maçãs de seu rosto. Um gloss pêssego umedece os lábios carnudos, deixando-os mais sensuais. Henrique respira fundo. Gosta da imagem que vê no espelho.
O jovem tenor sai do camarim e percorre o corredor do teatro. Lembra-se dos passeios com o avô que viera morar em sua casa após ficar viúvo. Sem muito equilíbrio, ele evitava andar sozinho. E Henrique o acompanhava, depois das aulas, pelas ruas tranquilas da Lapa. Conversas inesquecíveis, histórias da época em que era bombeiro. Mais que um avô, ele se tornara um grande amigo e o incentivava a continuar com a música.
– Medo? Medo de quê? De ser diferente? Pois é justamente com essa diferença que você vai poder se destacar, rapaz...
As dúvidas sobre sua sexualidade não mais existiam. Os desejos pelas garotas, a descoberta do amor por Maria Rita...
Que importância teria o que os outros pensassem dele?
E Henrique retornou ao canto. Decidiu aperfeiçoar seu talento.
Uma outra questão, porém, começou a inquietá-lo:
Como custear os estudos se sua família era tão pobre?

Terceiro sinal. Chega o grande momento. Somente quatro passos afastam Henrique do palco. Ele sente moleza nas pernas. As mãos estão frias. O maestro, que irá entrar primeiro, deseja-lhe boa sorte.
E isso, realmente, Henrique sempre teve.
Sorte por ter uma família que se sacrificou para ajudá-lo. Horas e mais horas de um trabalho extenuante que só por um firme objetivo foi possível suportar.
Sorte por conseguir uma bolsa de estudos.
Sorte ao vencer um concurso nacional.
– .Sorte e talento, dizia sua mãe.
– ... e determinação, completava o avô.
Ah! Como Henrique queria que seu avô estivesse com ele nesse momento. Acostumara-se com seu apoio e incentivo. Mas, na semana anterior, ele sofrera um infarto e precisou ser internado. Uma pena não poder compartilhar a vitória...
O devaneio se interrompe quando o apresentador anuncia o maestro e, em seguida, o seu nome.
Um orgulho preenche seu coração que bate cada vez mais forte. Henrique entra no palco e olha para a plateia. Sabe que pessoas queridas estão presentes em meio a tantos rostos desconhecidos. E ele cantará para todos, como muitas vezes sonhara.
Na primeira fila, reservada para a família, vê sua mãe, sua noiva e suas duas irmãs. Tenta encontrar o avô. Quem sabe ele não sairia do hospital para lhe fazer uma surpresa?
Mas, não... O lugar está vazio...
Com os primeiros acordes da orquestra, Henrique mergulha num mundo mágico. Nada mais lhe importa, a não ser a música. Sua voz melodiosa inebria. A afinação é perfeita. Todos se maravilham com seu timbre peculiar, sua interpretação e sensibilidade.
Ao entoar a última nota, a plateia prende a respiração.
Por um segundo, o silêncio... Depois, aplausos... muitos aplausos...
Henrique abre um sorriso e, emocionado, contempla o magnífico teatro. Não quer perder nenhum detalhe. As pessoas de pé, os camarotes suntuosos, o brilho das luzes... Pensa no avô, com gratidão. Sente sua presença e até o cheiro de sua colônia parece que se impregna no ar.
Num hospital público, o paciente do leito 603 aplaude com entusiasmo. Lágrimas escorrem pelo rosto. Os doentes do mesmo quarto acordam assustados e começam a balbuciar. A enfermeira de plantão logo chega. E sorri, como se soubesse o que está acontecendo.
Aos aplausos, unem-se outros sons da vida cotidiana. Mas nada se compara ao afetuoso canto de um sonhador que aquele velho coração, na ilusória distância, conseguiu escutar.

Márcia Etelli Coelho
Segundo Lugar - Concurso Literário Categoria Prosa
XI Jornada Médico-Literária Paulista 2011

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