Acabou
de virar a esquina. Como se diria antigamente, escafedeu-se. Foi vista pela
última vez banhando os pés no chafariz da praça, tantas eram as bolhas e os
calos de tão longa caminhada, vida adentro, vida afora, peregrina de longa
jornada, de efêmero tempo.
Cheguei
a confundi-la com a sombra do cachorro, tantos são os cachorros hoje em dia que
nos tropeçam em todas as calçadas, embaralhando coleiras, em busca do
estereótipo da fidelidade canina, à falta da fidelidade humana de que somos tão
precisados sem nos darmos conta.
A
confiança foi com ela, traidoras, me disse o jornaleiro, arauto do bairro e
testemunha ocular do crime inafiançável de abandono recorrente, o último a
vê-la na ponta dos pés para não fazer barulho, para não se sentir presente, nem
necessária.
Dizem
as versões mais desencontradas, pelo menos nisso são unânimes, que se
transformaram, num repente, em mensagens impessoais de celulares anódinos e
insípidos, despejando bonequinhos, ora risonhos, ora tristonhos, tsk tsk tsk,
na falta do que dizer, obrigando-nos mesmo a falar do vazio que ela deixou, num
único espaço livre de apenas duas ou três laudas, tempo máximo em que nos é
permitido sentir saudades, procurando inutilmente no calçamento das ruas o
menor vestígio de seu rastro. Lágrimas, nem pensar, se não houver mão que
estenda o lenço ou ombro para encostar. Só fotografias sorridentes,
fotoshopadas, sem espaço para palavras, que se volatilizam no dia seguinte sem
nenhum esforço.
Apertando
os olhos pra melhor ouvir e tapando os ouvidos para melhor enxergar, meio como
o lobo da Chapeuzinho, pensando bem, não foi uma só amizade que se perdeu,
afastando qualquer traço de saudosismo, mas cem, mil talvez, tantos são seus
contornos, seu brilho e suas arestas: qualidade especial de amor em que se
supõe desprendimento e altas doses de tolerância e generosidade, com espaço
amplo para a alegria em toda a sua dimensão expansiva ou apenas discreta;
regozijar-se (outra palavra antiga), não só amizade de copo e de madrugadas de
bar, mas o entranhar-se confidências até a hora do amanhecer tardio ou do
anoitecer precoce.
Que
seja, essa amizade que foge, não só o curativo das feridas reincidentes que se
multiplicam neste mundo que, sem ela, visivelmente apodrece cercado de todos os
lados, amarrado em redes sociais em que
todo mundo é amigo porque assim teclou amigo, assim acreditou e assim sem
acolhida o amigo deletou. A mesma amizade que cruzou os braços fechando o
acesso ao peito, refugiados todos que somos, em vez de fechar o abraço como
abraço, corrente e cadeado, só porque abraço, nessa imensa solidão de mundo,
deserto de sentimentos à espera de serem revividos num renascimento
ansiosamente esperado, e tanto, que se perde até a consciência de que eles
estão ali, ao alcance da mão, quando não acreditamos mais que a solidariedade é
a chave de tudo, é a chama incipiente de nossa esperança, devastada pela
violência que de todos os cantos nos sufoca e pela indiferença que nos
insensibiliza e congela, resultado de nosso isolamento. Todos no último vagão
do último trem para uma hipotética Alemanha. O resto é arame farpado.
Como
não sumir essa amizade aleijada por nós, logo nós, que não lhe dedicamos tempo
e espaço, nós, que não lhe regamos o caule, a folha e a raiz pela recompensa da
flor e do fruto? Sem reagir, somos nós próprios os responsáveis e artífices de
nossa mais profunda e destrutiva solidão. Você, amizade, fugiu a tempo, quem
somos nós para julgá-la? Pé ante pé, na ponta dos dedos, na calada da noite, na
aura negra da madrugada, no caudal da tempestade, na miudez da garoa. E, com
isso, tornou-se clandestina. Escondeu-se, quem sabe, nos porões dos navios
negreiros onde o suor é mais ácido, nos canhões dos navios piratas a um palmo
do barril de pólvora, nas bandeiras da frente de batalha, nas mãos dos amantes
que se separam no escuro do cinema como em crônica de Paulo Mendes Campos,
provando que até o amor acaba e, se é que o amor acaba, como a amizade não
acabará, nesse tempo em que amar tem carimbado na embalagem um prazo de
validade? Ao pó retornará. No pó se dispersará no vento da impossibilidade. No
sítio desolado do obscurantismo e da incomunicabilidade.
Talvez
expulsar o pessimismo com unhas compridas de lobisomem e todos os dentes,
incluindo os sisos. Lutar para não morrer em vida. Dar as mãos na procura de
seus pares. Usar os olhos para olhar. A boca para falar e dizer. As mãos a se
apertarem, não só para contar dinheiro para as contas exorbitantes do mês.
Reacender o desejo de estar junto e não direcioná-lo para o consumo compulsivo,
consumo de coisas e de pessoas. Consumo de desejos vãos. Ambição por ambição.
Consumo de idéias vazias de significado, mesmo com a roupagem do politicamente
correto, que tudo disfarça sem resolver.
Recuperar
a conversa do banco de praça, dos pés descalços na água corrente dos rios, na
caminhada no musgo escorregadio em que as mãos e os braços se amparam evitando
a queda, no chá quente ou café fresco recém-coado em volta do fogo, no prato de
legumes multicoloridos na mesa da cozinha. Degustar a amizade através da
existência das coisas, bendizer, maldizer, gargalhar, fofocar, passar a limpo
todos os verbos do dicionário e, só depois de viver tudo isso, só muito depois,
morrer em paz, deixando a marca do viver no coração do amigo que Milton guardou
para nós no fundo do peito, debaixo de sete chaves, o único antídoto que nos
resta se a vida nos pregar uma peça e nos trouxer a morte antes do tempo
pretendido. Quem sabe, então, a amizade não tenha ido embora. Estava só
cochilando, escondida entre as tábuas do assoalho que pisamos todo dia, o tempo
todo. Ela apenas nos pregou uma peça. É pegar ou largar.
SERGIO PERAZZO
PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2015-2016
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