22/06/2019

ANAMNESE POÉTICA



            -Doutor, estou sentindo que perdi a poesia em minha vida.
            Não é todo dia que somos confrontados com uma frase assim. Normalmente a queixa é mais próxima de “estou me sentindo triste” ou “estou com dor aqui ou ali”, mas perder a poesia era algo novo para mim. Não me lembro de ter estudado esse quadro na faculdade, nem debatido algum caso assim com meus professores. Mas aquela moça, cabelos longos e negros, olhos azul-curioso, lançava-me essa questão.
            -O que a senhora quer dizer com “perder a poesia”?
            -Isso mesmo, perdi a poesia. As pedras no meu caminho, agora são só pedras mesmo. Nada mais tem rima, nem sonoridade. Agora minha vida está uma crônica chata de jornal.
            Aquilo começava a ficar cada vez mais confuso para mim. Sonoridade? Pedra? Seria um quadro depressivo? Resolvi arriscar:
            -A senhora se sente triste, desanimada, sozinha?
            -Se o senhor acha que eu estou com depressão, já vou logo avisando que não é isso. No começo até pensei que fosse, mas depois vi que não: o problema é a poesia.
            -E quando começou esse quadro?
            -Ah, acho que faz um mês, mais ou menos... quando eu entrei no meu novo emprego.
            -A senhora trabalha com o que?
            -Trabalho num escritório de advocacia, organizando arquivos, digitando coisas, sabe? Trabalho tradicional. No início, estava muito feliz, poxa, um trabalho novo, novas perspectivas. Ainda conseguia entender metáforas, ainda via alegria nos versos espalhados pelos muros dessa cidade. Mas a rotina, com o tempo, não sei, doutor, acho que agora sou um verso metrificado, sabe? Decassílabo...
            Nunca me senti tão impotente na minha vida. Decassílabo? Seria isso um sinal clínico do qual nunca haviam me informado?
            -O que aconteceu ao longo desse tempo?
            -Eu acho que me tornei um poema parnasiano, doutor. Sabe, daqueles bem fechados, poema de dicionário? Sempre que ia escrever algum relatório para meu chefe, tentava colocar uma metáfora, uma prosopopeia, mas isso sempre era visto com maus olhos. Um dia, escrevi assim: “Nossa cliente relata que seu marido é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Pessoa, doutor, todo mundo gosta de Pessoa. Quando meu chefe leu aquilo, achei que iria ser demitida. Fez-me prometer que nunca mais faria aquilo, sob risco de ser mandada para o olho da rua. O senhor mesmo, doutor: pode receitar um tango argentino para algum de seus pacientes?
            -Creio que não.
            -Bandeira, doutor, Bandeira. Acho que então deve entender o que eu quero dizer, não?
            Não estava entendo nada daquilo, mas tinha certeza que nenhum medicamento surtiria efeito ali. Talvez um psicólogo? Psiquiatra? Também achava que não era o caso. Continuei a conversa.
            -Mais alguma coisa aconteceu nesse meio tempo?
            -Meu namorado. Ele é um livro realista, doutor. Quer saber tudo nos detalhes mais íntimos, às vezes é irônico, sempre realista. Disse que o meu amor por ele batia na aorta, ele me mandou ir ao médico. Drummond, doutor. Não sei mais o que fazer. Tenho medo de me tornar um manual de carro.
            Agora tinha certeza que o caso não era para remédios nem tratamento médico. Resolvi arriscar um tratamento, pois não sabia mais o que fazer, mas queria ajudar a moça despoetizada. Resolvi entrar no jogo.
            -A senhora ainda lê?
            -No máximo o jornal do metrô, doutor. Não tenho tempo, a vida está muito corrida, sabe?
            -Certo, vamos tentar o seguinte. Vou te receitar 3 doses diárias de poesia. Uma de manhã, uma no almoço e uma no jantar. Tente não ler nada pesado depois do jantar ou antes de dormir porque pode fazer mal. De manhã, opte por textos mais profundos. Não precisam ser textos longos, tente achar um tempo para isso. Faça isso por quinze dias e volte aqui para verificarmos os resultados.
            A moça me olhava com cara de desconfiança, porém sorria. Agradeceu, pegou a receita e saiu. Encostei-me à cadeira e pensei em como me fez falta a disciplina de patologia literária na faculdade.


LUCAS HENRIQUE PEREIRA
Estudante de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM)
PRIMEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP


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