22/06/2019

CIRCULAR AVENIDAS


     Era 1977. Andar a pé, de ônibus, de metrô, tantas vezes. Tanto que, nas mesmas horas do dia ou da noite se encontravam as mesmas pessoas, quase como um relógio certeiro em suas badaladas. Assim era grande parte da vida de João. De casa para o trabalho, do trabalho para a faculdade, da faculdade para casa. Nos caminhos, gente que marcava humanamente os trajetos. Alguns conhecidos pelo nome, outros apenas pela presença. Eventualmente, havia variações nessa rotina, principalmente por conta do cinema, diversão barata de então. Em algumas destas ocasiões, João entrava no ônibus Circular Avenidas.
Para ele, era como entrar em um mundo diferente em relação à cidade do lado de fora, aparentemente caótica, mas ele sabia que organizada naquelas pessoas-relógioque a compunham. Dentro do Circular Avenidas a impressão era diferente,as pessoas pareciam sempre variar. Alguma repetição ele viu quando uma mesma estudante, de uniforme,apareceu duas vezes; também um senhor com chapéu e guarda-chuva por três vezes, mas, em horários diferentes. João começou a pensar sobre isso e percebeu que ele não usava o Circular Avenidas tão regularmente como os outros ônibus ou meios de transporte. Constatou que não eram os passageiros que variavam, ele é que variava os horários.
Mas, havia uma percepção diferente dentro do Circular Avenidas, que erareforçadapelo fato de que nunca estava muito cheio. As pessoas entravam e saiam em uma certa cadência, talvez por ser um trajeto “circular”, como dizia o nome, sem fim nem começo. Até isso virou uma lenda: alguns diziam que o início era na Avenida Paulista, outros na São João. O fato é que esse ônibus não ia para lugar nenhum, e ao mesmo tempo para vários. Se alguém se distraísse, ou dormisse, poderia constatar estar de volta no mesmo lugar em que havia partido.
     Em certa ocasião, João foi assistir àSessão Maldita do Cine Majestic, que começava à meia noite. Depois do filme, de madrugada, sobrou só o Circular Avenidas andando pela cidade. A partir dele, teria que andar por meia hora a pé até chegar em casa, o que lhe parecia bastante razoável. Foi nesse transcurso, que conheceu, sentado lá no fundo do ônibus, o Percival.
Conhecer, ele não conheceu assim como se conhece as pessoas, com apresentações formais. João estava sentado no meio do ônibus, ladeado e cercado por pessoas um tanto cabisbaixas de sono e da vida. De repente, ouviu uma alta gargalhada e um berro: “Segura essa, Gilberto!”. Gilberto era o motorista. Percival falou isso em uma curva acentuada e veloz, que o ônibus fez na esquina vazia da Avenida São João com a Avenida Ipiranga. Na dita exclamação, os sonolentos passageiros levantaram as pálpebras, depois os olhos e viraram a cabeça, exceto um senhor sentado em um banco perfilado ao lado do lugar de Percival, provavelmente porque já estava acostumado a esses repentes. Aliás, Percival não estava sentado em um banco, mas espalhado em vários, que, conectados, preenchiam o fundo do ônibus. Mais adiante, o Circular parou fora do ponto. Alguns passageiros elevaram sobrancelhas curiosos, pois perceberam, no tempo do corpo, que a parada não era comum. Gilberto saiu do ônibus, retirou um cachorro do meio da rua e voltou ao volante. Percival: “Aêh, Gilberto! Você tem o coração de ouro!” Gilberto retrucou: “Quieto, Percival!”. Eis a revelação do nome.
Alguns pontos à frente, hora de descer. João ficou encafifado com aquela personagem que acrescentou uma indagação sobre o seu mundo à parte do Circular Avenidas.Por alguns dias, ficaram na memória mais os berros do que a imagem do Percival, além daquelas cenas.
Alguns dias depois, em hora não tão tardia, lá estava novamente, sentado no fundo do mesmo ônibus, o mesmo Percival, e na direção o mesmo Gilberto. Desta vez, João teve que sentar mais próximo à figura saliente, onde havia lugar. E o tal começou a falar com uma voz clara que ressoava: “Hoje tá São Paulo da garoa. Muito bom. Nem quente, nem frio.Você não acha?” Perguntou. A partir daí, entabularam uma conversa, que fez o João perder o ponto em que desceria. Percival: “Não faz mal. Daqui a pouco você vai chegar no mesmo ponto”. “Sim, mas vai ser uma baita volta”, disse o João.
     Essa expressão foi uma deixa para um discurso de Percival. Ajeitou-se, levantando um pouco nos bancos em que se espalhava, e iniciou com uma voz, soma de radialista com feirante:
     “Olha, eu, quando sento aqui, não tenho pressa de levantar. Eu me divirto nisso aqui. Dou voltas e voltas. Não tenho pressa. Eu vejo o mundo passando sentado aqui no fundo. Eu conheço o Gilberto. Conheço os outros motoristas. Nós vamos levando a vida. Eu com eles. Sabe que eu até sei dirigir ônibus. Uma vez até precisou, quando um motorista começou a passar mal e eu dirigi até o hospital. Mas eu fico no ônibus sempre à noite. É à noite que a gente vê a alma da cidade. Quando você só entra e sai do Circular, você não vê o mundo aqui dentro. Pra isso, precisa ficar aqui dentro. Dar muitas voltas. A vida dá muitas voltas. Eu venho aqui toda noite. Às vezes mais tarde, às vezes mais cedo, mas sempre de noite. É que aqui tem muito passageiro cansado, com sono, só passando. Não. Eu não passo, eu fico. Só saio antes do amanhecer. Quando a luz da rua começa a apagar, não estou mais aqui”.
     O ônibus chegou novamente no ponto de João descer. Ele despediu-se de Percival, dizendo esperar encontrá-lo outra vez. Toda aquela filosofia do passageiro permanentelhe provocou reflexões – tantas vezes Percival falou a palavra aqui – e acrescentou mais mistério ao seu mundo à parte do Circular.
     O resto do ano foi bastante atribulado em estudos e trabalho, de modo que João pegou o Circular só durante o dia. Mas, ficou cismado em reencontrar Percival. Entrou o ano de 1978 e férias de janeiro. João foi passear de Circular Avenidas tarde da noite. Entrou em um, desceu, depois em outro, e não encontrou o Percival.
Pensou sobre onde poderia ficar ou morar essa pessoa que passava as noites vagando e divagando. Lembrou da figura lendária dos mitos medievais com o mesmo nome. Ficou em dúvida se vivenciou uma lenda, ou uma ilusão, no ônibus. Em noites sucessivas, repetiu a busca. Deu voltas. Com o passar das noites – não sabemos se ele percebeu – João, ele mesmo, foi se tornando Percival.

AFONSO CARLOS NEVES
Médico Formado Pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP)
SEGUNDO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP


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