22/06/2019

"S"


Quando criança, minha mãe e eu tínhamos um ritual antes de irmos dormir. Ela colocava minha cabeça em seu colo e sussurrava baixinho, me pedindo para não fazer barulho, pedindo para que eu escutasse o som do silêncio. Ela costumava dizer que se eu me concentrasse o suficiente daria para ignorar todos os ruídos externos e escutar apenas o som da Terra girando, o mundo se movendo, a noite aos poucos dando lugar ao dia. Ficávamos assim até eu dormir. Era nosso ritual noturno.
            Mesmo depois que ela se matou, continuei cumprindo fielmente o nosso ritual. Eu me concentrava cada vez mais para ouvir aquilo que ela chamava de som do silêncio, algo que quando criança eu nunca conseguira ouvir direito. Aos poucos comecei a entender aquilo que ela queria me mostrar.
            É realmente possível escutar a Terra girar, da mesma forma que você escuta uma bola sendo rodada no chão. Mas eu passei a escutar muito mais. Ao fundo, bem baixinho. No começo era quase imperceptível, mas com o tempo o volume foi ficando mais alto, ou talvez eu tenha aprendido com a prática a isolar os demais ruídos e só me concentrar nesse.
            Era uma espécie de zumbido. Mas um zumbido que não tinha o som de “z”. Era claramente o som de “s”. A letra s em sua forma mais pura, constantemente repetida de uma maneira que adentrava os ouvidos e lá permanecia. Um som que só eu podia ouvir. Um som que falava comigo.
            Silêncio
            No começo eu só escutava o som quando estava em silêncio, sempre antes de dormir. Mas depois ele conseguiu entrar na minha cabeça e nunca mais saiu. Os sons de s se transformaram em palavras, frases, um contínuo de sentenças o tempo todo na minha cabeça.
Sempre palavras com s.
            Silêncio Solidão Sujeira Surto Sexo Sadismo Segurar Surrar Sorriso Sentir Servidão Sofrimento Suicídio
            Parei imediatamente o ritual noturno. Eu não queria mais ouvir aquele som. Não queria mais ouvir o silêncio. Passava os dias rondando pela cidade em locais barulhentos. Metrôs, avenidas movimentadas, feiras. O silêncio era perigoso. O silêncio falava comigo. Não tinha mais como fugir. Ele estava lá para sempre agora.
            Nenhum lugar era seguro mais. Nenhum barulho era suficiente para suprimir o som do silêncio. Independente de onde eu estivesse, do que eu fizesse, mesmo quando eu gritava. Ele estava dentro da minha cabeça! Eu não conseguia parar de escutar aquele som. Comecei a obedecer todos os comandos. Como eu poderia não obedecer? Era a única forma de fazê-lo parar, de tirar aquilo de dentro de mim.
            Isolei-me de todos os poucos amigos que eu tinha. Solidão
            Deixei de tomar banho e de ter qualquer cuidado com a higiene da minha casa. Sujeira
            Antes de me trazerem para o hospital, me disseram que eu tive um episódio grave de psicose. Surto
            Uma prostituta trabalhava perto da rua onde eu morava. Perguntei se ela gostaria de ouvir o som do silêncio comigo. Ela riu, mas me seguiu até meu apartamento depois de eu ter mostrado o dinheiro. Sexo
            Amarrei seus pulsos na minha cabeceira, com muita força. Não parei quando ela me disse para parar. Sadismo
            Apertei seu pescoço por tempo demais. Segurar
            Eu não conseguia parar de bater. Ele não me deixava parar. Surrar
            Eu não parava de sorrir enquanto os policiais me levavam. Eu estava feliz por finalmente ter conseguido fazer com que ele parasse. Eu não ouvia mais o “s”, só o som da sirene da viatura, os comentários dos vizinhos, o barulho do tráfego. Sorriso
            Mas foi momentâneo.
            Ele voltou. Ele sempre volta. Está sempre comigo. Posso senti-lo como sinto cada um dos meus membros. Sentir
            Obedecê-lo é a única forma de continuar vivendo em paz. Servidão
            Não conseguirei me livrar dele até o dia em que eu acabar exatamente como a minha mãe. Uma furadeira atravessada de uma orelha a outra passando pela cabeça. Só assim ela conseguiu parar de ouvir o som do silêncio. Sofrimento
            Ela se libertou. Suicídio
            Você não pode vê-lo. Talvez nem consiga senti-lo. Mas espero que isso não te iluda, porque ele está lá, sempre estará. Zumbindo baixinho. Tentando se comunicar. Pronto para entrar na sua cabeça. Não tem como fugir do som do silêncio. Uma vez que você o escuta, jamais deixa de ouvi-lo.
            Nas madrugadas tranquilas, quando você deitar na sua cama e respirar fundo por alguns segundos, pare e se concentre no barulho do mundo girando. Com mais um pouco de esforço, se concentre no “s” bem ao fundo. Eu sei que você vai conseguir.
            O som do mais puro silêncio estará lá te esperando.
            Ou talvez seja apenas eu sussurrando a mensagem do silêncio nos seus ouvidos enquanto você está de olhos fechados tentando dormir.
            Você já consegue ouvir?
            SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS

  
CAROLINA VILELA MARTINS TONIN
Estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)
TERCEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP

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