Um festival de anilinas comestíveis. De glacês de sonhos. Entrava e saía ano, não havia aniversário, bodas, batizado, primeira comunhão ou formatura em que Neném não se transformasse na figura central, a personagem mais aguardada. O que ela inventaria dessa vez?
Sua marca era jamais dizer como seria o bolo, segredo
guardado a setecentas chaves. Delicadamente não aceitava interferências. A
autoria era inteiramente dela. Criação única e exclusiva. Jamais se repetia.
Podiam confiar no resultado, sempre um sucesso, sempre um ó de admiração. Era a
assinatura da grande artista em cremes, paladar, cores e fofuras.
Podia ser um jardim com um balanço e cerca viva, uma
princesa de manto e saia rodada, uma bailarina suspensa numa única perna, um
navio reluzente, um campo de futebol com jogadores e tudo, até juiz, um palhaço
sorridente, uma cornucópia despejando moedas de chocolate, um missal aberto com
letras douradas, cálice e hóstia no caso de primeira comunhão, alianças
douradas em bodas de ouro ou até o escudo do colégio em desenhos e tonalidades
perfeitos. Tudo podia ser. Se houvesse bolo para comemoração macabra em
velórios, um ritual autofágico devorando a morte, Neném certamente inventaria
um caixãozinho de chocolate amargo ou um anjo de asas abertas recebendo uma
alma redimida em nuvens fofas de chantili. Se chá-de-bebê, um bolo redondo e
cor-de-rosa, de morango, que nem bundinha de nenê, envolto em fraldas
descartáveis de massa folhada, produto de meus delírios kitsch.
A arquitetura do bolo começava na véspera. Camadas de
pão-de-ló recortadas da forma, a princípio como se fosse apenas um amontoado de
massa saída do forno, tomando forma com golpes e toques precisos de faca,
pincéis, espátula e saco de confeiteiro com bicos dos mais variados formatos
espirrando flores, estrelas, teias rendadas e os mais inesperados arremates. A
escolha do recheio: doce de leite, geléia de morango ou damasco, ameixa-preta,
nozes, creme suave ou mole com ou sem coco ralado, chocolate de derreter a alma.
Só dissolvendo na boca se sabia o que e porque. A pavimentação lisinha do
glacê, não sei como a Neném conseguia, asfalto liso e escorregadio de doçuras,
que fazia com que cada um adiasse o mais possível cortar o bolo e destruir a
simetria daquela obra-prima de confeitaria artesanal em perfeita harmonia com
cada festa, com cada espírito de celebração.
Neném, eterno sorriso no rosto, sempre feliz nos limites
de uma vida modesta, contribuindo com sua arte para engrossar o salário
minguado do marido, que nunca deixava de apostar no talento dela, sempre na
cabeça, tratador de cavalos do Jóquei Clube, com seu eterno chapéu de feltro de
aba gasta à moda dos filmes noir dos anos quarenta, meio mocinho, meio
gangster.
Quando Neném irrompia na festa tocando a campainha do
portão, um revoar de criançada corria a seu encontro querendo desfazer o
embrulho e desvendar o mistério pousado em seus braços. Os adultos apenas
fingiam que não estavam nem aí, até não aguentarem mais. O que Neném aprontou
dessa vez? Superou a obra-prima do ano passado? Todo mundo queria ver. Mais que
comer. Tudo nos fazia crer que a vida era só alegria.
Neném era a filha adotiva e caçula dos meus bisavós
maternos, lado do avô, que já cuidavam de oito filhos biológicos. Neném era
minha tia-avó adotiva. Esmeralda, solteirona e que mancava de uma perna, era
especialista em empadinhas de camarão. Alayde costurava vestidos de noiva nos
mínimos acabamentos, sendo outra costureira de sonhos, viva ainda hoje com 94
anos. Castorina era hóspede permanente do manicômio de Engenho de Dentro, um
subúrbio do Rio, e jamais saía de seu mundo povoado de delírios e alucinações,
um outro tipo amalucado de sonhos, mais pra pesadelos, da sua inevitável
solidão. A lenda familiar dizia que seu mal começara da teimosia de tomar
melancia com leite, mistura mortal de caldeirão de bruxas. Depois deu pra falar
com as paredes do quintal, um minipomar coalhado de carambolas, cajás-mangas e
goiabeiras. Anselmo, meu avô, seguira o pai na administração de uma loja de
ferragens do bairro, antes de comprar o ponto do seu primeiro botequim. Neném
tinha a missão de adoçar as pedras dos caminhos de cada um deles, lá da sua
casinha de fundos de uma vila incrustada na Lopes Quintas, vizinha da igreja da
Divina Providência, logo adiante do açougue do pai do Mário, meu amigo de
infância.
No pátio em frente à sua casa havia um nicho que abrigava
a imagem de uma Nossa Senhora não-me-lembro-qual, que velava seus confeitos e
anilinas, tomando conta de seus açúcares coloridos e do ponto de assado dos
seus bolos e de calda dos seus recheios.
Acabei perdendo Neném de vista e no tempo. Os
aniversários nunca mais foram os mesmos. Alguma coisa faltava nas festas nesses
tempos de bufês e de motivos pré-fabricados da Disney Corporation em todas as
decorações festivas. Uma pitada de anilina? Fiquei sabendo que Neném morrera
bem velhinha já há alguns anos. Ninguém me avisou. Nesse dia em que eu soube,
no último inverno, me lembro que era quase palpável a água da chuva que
escorria da folhagem num canto visceral, num canto virtual da minha saudade.
Numa viagem da imaginação olhei para a cara da santa lá no pátio da casa da
Neném e vi, claramente, que, por milagre, ela deixava escorrer uma lágrima sem
nenhum propósito a não ser o de marcar a divindade com o traço do sublime.
Poucos são os intervalos do cansaço em que é possível distinguir, por exemplo,
uma canção do Francis Hime transbordando afeto, de uma sugestão de cena de
filme na mudança brusca do movimento de uma câmera hipotética.
Nada pode ser captado como um todo. Só pedaços, só cacos
de espelhos que meio refletem todos os passos de uma geração. De minha geração.
De nossa geração. Desde a infância. Tempo de bolos e de glacês. É como se uma
pedra de gelo se derretesse diante do bafo morno da respiração entrecortada de
desejo e da surpresa. Lágrimas de chocolate no rosto da santa envoltas em fios
de ovos e arabescos desenhados com traços de anilina, que a gente tem medo de
tocar e vontade de comer, lambendo os beiços e chupando a ponta dos dedos de menino.
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