Esta semana vivi um momento singular na minha vida como médico e gostaria de partilhar o que aprendi ou que pelo menos ainda estou aprendendo. Recebi a visita de dois irmãos de um paciente meu que havia falecido recentemente e cujo óbito eu atestara. Vieram tão somente para agradecer a assistência que eu havia oferecido durante a vida de seu irmão. Este paciente que chamo de amigo, pois assim eu o considerava, tinha uma doença degenerativa que, apesar do nome pomposo, era por demais atroz: doença de Von Recklinghausen. Essa doença afetava o sistema nervoso central e vários nervos cranianos; desse modo, ele não andava, tinha dificuldade de deglutir, engasgava-se facilmente, era surdo e lia somente frases escritas com letras garrafais.
Ah! Um adendo: esse amigo tem um nome. Chama-se Alberto Tokuriki.
O Alberto era um amigo especial. Quando nos víamos, o sorriso era mútuo, apesar das agulhadas que de vez em quando eu lhe aplicava. Falava com ele através da escrita, cujo papel ele aproximava junto aos olhos para que pudesse ler, ao que ele respondia verbalmente com enorme dificuldade. Entre as muitas perguntas que eu lhe fazia, perguntei certa vez se ele se sentia feliz, ao que me respondeu: “Muito! Tenho uma família maravilhosa que me ama e estou sempre perto deles.” Em meio a tantas dificuldades, eu não esperava uma resposta positiva tão convicta. Aquela capacidade de enxergar a luz onde tudo são sombras mostrava a marca de uma alma forte capaz de transpor pesados obstáculos. Lembrei-me de uma frase que li, cujo autor desconheço, que dizia haver duas maneiras de ver a vida: uma delas é de que nada na vida é um milagre e a outra é a de que tudo na vida é um milagre. Parece-me que o Alberto norteava sua vida pela segunda maneira.
Com o evoluir da doença, Alberto já não mais deglutia e necessitava de uma cirurgia para a colocação de uma sonda a fim de alimentar-se pelo abdome. Mas uma barreira para o meu amigo, na qual vi o desânimo tomar conta de sua alma. Durante a nossa consulta bate-papo, dentre as muitas frases que lhe escrevi, uma o tocou profundamente.
Era a seguinte: “Vamos viver um dia de cada vez.”
Pois bem, surgiu novamente o Alberto de alma forte e pujante e aceitou fazer a referida cirurgia.
Seus irmãos contaram-me que o Alberto, após aquela visita em que escrevi a dita frase, pediu que a fixasse na geladeira da cozinha e todas as manhãs a lia. E assim foi o meu amigo vivendo um dia de cada vez, até que chegou o momento da partida. Partiu numa manhã, adormecido, como o valente que repousa após a longa batalha.
Obrigado, meu amigo, pelas lições que você nos ensinou. Deixo aqui assinalado seu nome em meu texto, eternizando a sua passagem pelo mundo. Tenha certeza de que sua vida não foi vã.
José Alberto Vieira
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