Último,
sou o último da minha espécie. Em extinção, tenho por sol apenas uma luz que me olha deitado, por céu tenho paredes brancas. A liberdade me vem por uma janela que por todos os modos tenta me convencer a levantar e a sair por ela.
Não há mais ninguém à minha volta, todos já se foram há muito tempo sem deixar vestígios de suas presenças.
Ser o último me dá o privilégio de não sentir ausências. Não há recados a deixar para ninguém; cartas de amor e saudades não têm sentido para os ausentes.
Há muitas coisas desapegadas espalhadas pelos cantos e muito mais coisas que sequer terão alguém para compreendê-las e amá-las como eu amei, não há e nem haverá
ninguém para sentir o prazer da conquista ou o gostinho egoísta de se julgar dono de alguma coisa.
Sobrarão muitas coisas, um par de óculos sem receita, livros pela metade que não terminarão de contar suas histórias, uma caneta jogada em cima da mesa que alguém certamente irá pegar, roer a ponta e escrever um telefone ou recado num pedaço de papel qualquer para, quem sabe, depois nem se lembrar para que serviria.
Centenas de coisas sem memória, quem irá saber o que eu mais gostava de ouvir, o que cada música significava?
A gravata ganha num destes aniversários, mantida com o mesmo nó impossível de se refazer, não servirá para nada, além de ser amontoada com outro enorme monte de roupas. O chapéu de esquiador num país tropical se transformará de alegre lembrança a coisa inútil.
Os retratos terão pessoas sem nome, crianças que de tão velhas e esquecidas terão suas imagens apagadas do papel amarelado até desaparecerem sem deixar vestígio. Apenas os documentos falarão por si, como um epitáfio no fim do espetáculo de circo: ninguém nota, ninguém quer saber, ninguém irá querer ouvir. Todos já se foram e eu sou o último de minha espécie.
E olhando a lâmpada que tomo por sol, paredes que tomo por céu, sozinho, último. A porta não se abrirá com um sorriso adolescente, não haverá barulho de alegria. Não preciso pôr os óculos nem vestir a gravata com o mesmo nó de tantos anos.
A janela continua aberta e eu sinto uma felicidade imensa ao olhar através do seu espaço. Consegui me libertar das roupas, das coisas sem memória, das fotografias em que não mais me reconheço, não preciso mais dos óculos nem da gravata, muito menos de documentos velhos e mofados.
Saio do quarto pelo vão da janela, sorrateiramente, sem que ninguém me note, respiro fundo e ando por aí sem qualquer pressa. Tenho todo o tempo do mundo.
Eu venci, quem se importa com isso? Meu céu é maior, meu sol é maior, fui o último da minha espécie, conquistei o direito de recomeçar tudo de novo!
Roberto Antônio Aniche
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