O olho é uma projeção do cérebro para fora da caixa craniana. É uma tentativa que o cérebro fez, ele mesmo, de vir explorar o meio que circunda o corpo. O sistema nervoso não podia compreender o que se passava no exterior do organismo através dos demais sentidos. O som, o olfato, o paladar, o tato, a cinestesia e a cenestesia não forneciam informações suficientes para o primordial atributo do animal, o mover-se ou exercer função assemelhada. Esta atividade exigia o conhecimento de algo muito importante, a terceira dimensão. O espaço. A estereoscopia. O volume e a perspectiva.
Uma demonstração literária de extrema acuidade sobre este fenômeno está implícita no extraordinário livro de José Saramago, “ Ensaio sobre a cegueira”. Nele se nota que seres humanos perdem quase toda capacidade de relacionamento com o meio, atordoam-se e se desesperam e estão inaptos para sobreviver por si mesmos. Não fosse a anterior existência de humanos dotados de visão que lhes deixaram provisão alimentar para seu uso durante um certo tempo e não fosse um personagem que não cegara e se tornara os olhos de grande parte do grupo, aquela humanidade cega não estava capacitada para produzir sua própria subsistência. Não fora também o retorno da função visual já no limite da sobrevivência, praticamente todos acabariam mortos, na mais abjeta forma de vida, chafurdados nos seus excrementos, na podridão, na imundície e na privação. Certamente Saramago, ele mesmo um grande míope como se vê nos seus óculos com lentes “fundo de garrafa”, sentisse de certa forma uma cegueira parcial, vendo um mundo borrado, de curto alcance, e até mesmo atemorizado por uma expectativa de cegueira, pelo risco de descolamento da retina ou da perda dos óculos.
Um caso parecido ocorreu com um meu cliente a quem operei de catarata bilateral nos idos da década de 60, quando ainda não havia lentes de implante intra-ocular para substituir o cristalino extraído, e se usavam óculos com lentes muito grossas, de alto grau positivo, em torno de 13 dioptrias. Ele era um homem muito forte e ao ser assaltado em noite muito escura, tentou se defender e seus óculos caíram. Cegado, andou de gatinhas pelos arredores, apalpando, até que desistiu de procurá-los. Passou a noite ali mesmo. Só pela manhã ouviu vozes de gente se aproximando, e foi socorrido por alguém que os encontrou num vão entre os dormentes da linha de trem.
Hoje os cegos têm treinamento sofisticado, desenvolvem maior sensibilidade nos outros sentidos, adquirem autonomia de movimento até mesmo surpreendente. Mas não nos esqueçamos de que eles têm o suporte de milhões de olhos alheios que vêem por eles, criando um mundo habitável. Foi o olho que relacionou de modo mais eficaz o animal com o meio, entre eles o animal humano. Na natureza existem poucos animais cegos; apenas aqueles que desenvolveram um sentido vicariante, como os morcegos, que usam o sonar, de natureza auditiva. A sobrevivência está estritamente vinculada à visão.
É um tanto metafísico pensar que o cérebro, na sua evolução, tivesse um “desejo”, uma “vontade”, um voluntarismo de conhecer o mundo sem intermediários. Para isto lançou dois prolongamentos de si próprio em direção ao mundo exterior, através de dois orifícios na caixa craniana, que se abriram em forma de taça para recepcionar a luz. Por esta duas janelas na parede óssea, como se fossem escotilhas, ele vislumbrou as formas, as distâncias, conheceu o espaço. E se interou com ele.
A partir do relacionamento cognitivo com o meio, o bebê progressivamente valoriza a visão e a sobrepõe aos outros sentidos até então para ele muito importantes, como o olfato e o tato. Todos dirão que nesta altura a audição é tão importante quanto à visão, mas a audição pouco importa para reconhecimento do meio físico, ela se destina quase que exclusivamente ao relacionamento social, a inter-relação entre os indivíduos. Os mudos e os surdos podem sobreviver favoravelmente por si mesmos, e podem mesmo desenvolver outras linguagens de semiótica visual, como a mímica e o gestual, além da comunicação gráfica, a escrita e o desenho. Beethoven usou a pauta com maestria.
Com o surgimento da escrita e outros grafismos, como a pintura, o desenho, a fotografia, o cinema e a comunicação eletrônica da imagem, houve um relativo obscurecimento da cultural oral. O culto aos velhos sábios, os repositórios da memória, cada vez mais desaparece e eles estão sendo relegados ao ostracismo, ao quase abandono. Velho que tem pouco a dizer, vale tão mais pouco quanto maior a sua miséria intelectual. Os que ficarão velhos que se cuidem...
O olho é responsável por algo como 80% da informação e do conseqüente conhecimento. Está havendo uma revolução na revalorização do sentido da audição, com os modernos aparatos de comunicação e gravação, coisa um tanto parecida com o surgimento da imprensa. O telefone e os comunicadores eletrônicos, rádio, ondas eletromagnéticas, satélites, têm liberado o homem da sobrecarga de informação visual, mas não passam de mecanismos auxiliares, poupadores de esforço e de tempo. A informação fundamental permanece ligada à intercomunicação gráfica, a escrita. Originalmente a língua é um modo de comunicação sonoro, mas para muitas pessoas as línguas não nativas são mais entendidas quando escritas do que quando faladas. Um trabalho científico lido tem muito mais compreensão do que ouvido. E por sorte destes tempos modernos uma língua antiga, o inglês, está servindo de suporte gráfico para a comunicação da humanidade instruída, e novas línguas escritas estão surgindo, como o “informatiquês”, o “tecniquês” e as nomenclaturas diversas. O que seria de nós médicos, sem o léxico de medicinês?
Disse alguém, a lenda diz que foi Santo Agostinho, que ter dois olhos é luxo. Se a visão de um olho for 100%, a acuidade do portador será de 100%, não importa o quanto o outro olho veja mal, embora haja prejuízo da visão de relevo. Mas até nisto o cérebro foi previdente: nos fez com dois olhos para segurança e reserva. Afinal, em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Não nos esqueçamos que Camões, com apenas um olho, nos revelou a raiz da língua portuguesa.
O garoto espreitava a empregada no chuveiro. A mãe advertiu: -Quem olha pelo buraco da fechadura pode ficar cego. Irredutível, ele conjeturou consigo próprio: -É, mas vou arriscar um olho...
Geovah Paulo da Cruz
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