“A única e verdadeira fidelidade é a do espelho.”
Tomei a decisão de uma sentada só. Logo depois que contei a ela. Vou sim. Vou fazer uma reforma radical. Facial.
Indicaram um cirurgião.
Daqueles que só se vê em cinema - que são para as atrizes de cinema. Famoso. Excelente. Respeitado. Acho que até condecorado.
Coragem. Agendei.
Lá estava eu sentadinha na sala de espera. Tinha planejado ir bem arrumada. Salto alto. Blazer. Cabelos adequados. Tudo que dá o toque mágico e acesso direto para sentar num lugar daqueles.
Não deu certo. O trânsito emperrou. O tempo voou. E lá se fui do jeito que estava trabalhando. Com a realidade explicitamente estampada. Na face e na roupa.
Após me identificar arrumei um lugarzinho mais discreto a aguardar o chamado. Já me senti - de imediato - diante de um possível chamado divino. Tal a imponência do lugar. Melhor até dizer Lugar. Ali nada cabia em minúscula. E quase ri quando pensei nisso.
Em minha direção caminhava uma mulher alta. Formas voluptuosas - como diriam os italianos caso a vissem. Vestia uma justa calça preta. Botas de salto alto. Blusa também preta - curta. Um decote que ratificava a correção do meu pensamento anterior. Nada ali era para ser citado em minúsculo.
Olhei para ela enquanto ela escolhia um lugar. Lugar. E bem ao meu lado. Pensei cá comigo - com tanto espaço por que eu teria que servir de contraste. Mas tudo bem. Passou. Foi só um pensamento fugidio.
Aliás - eu deveria ter agido igual ao pensamento. E ser a fugidia. Muito mais me esperava.
Ao meu lado sentou-se a mulher alta. Notei os cabelos longos. Alguns fios cor de cobre. Franja.
Era um novo tipo de mulher. Mulher atual. Lábios grossos – preenchidos. Glúteos erguidos – reforçados. Peitos mais erguidos ainda – complementados. Pele facial hirta – paralisada.
Atendeu o celular. Notei que havia um esgar lateral mais forte do lado direito. Ela se esforçava na adaptação do novo e provavelmente invejado - preenchimento labial. Fosse a minha avó viva chamaria logo de beiçola e estava resolvido o assunto. Mas esta palavra também não cabia num Lugar como aquele.
Percebi que ela me olhou. Depois olhou para o outro lado dela. Percebi outra mulher sentada. Esta sim - com proporções bem expansivas. Sem avareza em termos de dobras por sobre a calça que usava. Tentava disfarçar com uma blusa preta e mais solta. Mas o tecido foi mais avaro que as formas - e muito ficou exposto. Parecia intranqüila olhando para a mulher de cabelos com fios de cobre e em maiúsculas distribuídas pelo corpo. Tentou se acomodar melhor na cadeira. Me pareceu que queria sumir. Difícil.
A mulher dos cabelos de cobre que minha avó teria praticado a desfeita terminológica - após olhar para um lado e outro - (entenda-se a moça das sobras de um lado e eu que era só faltas do outro) deu um sorriso tranqüilo e feliz. Estava maravilhosa. Sentada - com a coluna ereta - desconsiderou um encosto bem acolchoado do sofá de couro. Abriu um livro e concentrou-se na leitura. Li o titulo. Procedia.
Olhei para a minha frente. Lá estava sentada uma outra moça – magrinha. Tinha o rosto recoberto por uma pasta branca. Pensei. Esta será responsável por muitas noites minhas de insônia. Me auto-recriminei. Não se faz assim com quem está muito mais disposto que exposto. Ou vice-versa.
De repente escutei o meu nome. Era chegada a minha vez. Uma mocinha sorridente me orientou o caminho. Lembrei da letra de uma música antiga. Algo como “talvez a derradeira noite de luar”. Pensei tudo isso em segundos. Subi as escadas e fui atender ao tal chamado divino que até meu nome já sabia.
Sentei. Diante deste novo Deus. Que modifica o que o Outro insistiu em fazer. E que recria sem quebrar costelas nem multiplicar pães. Questionada - falei o que me incomodava.
Modesta.
Ele foi rápido. Olhou o meu rosto com a avidez de um tomógrafo. Perguntou. Se ali - e lá - e mais aquilo e mais isso não me incomodavam.
Me vi diante de um rosto que não podia ser o meu. Não me vi diante porque sequer me arrisquei a me rever. Melhor dizer que me imaginei.
Levantou. Eu o segui com o olhar. Era alto. Elegante. Mas o que mais me chamou a atenção foram os sapatos. Belos. Só me distrai dos sapatos porque notei a testa. Fronte lisa. Como se diria isso em latim - pensei. Porque a testa dele merecia uma citação em Latim. Ou em Grego. Na impossibilidade desta tradução me contive e me detive. Ou me abstive de qualquer comentário. Não importa.
Importa que - apenas com o olhar - ele já havia me desfeito e me refeito. E eu mal me sentara diante dele.
Foi incisivo. Nada de cosmético mais resolveria. Ousei citar outro método também utilizado. Quase riu. De nada adiantaria. Era cirúrgica a questão. E nada de poupar áreas. Todas estavam comprometidas. E muito.
A Gravidade cumprira muito bem o propósito. Teria salvação. Mas só com a reconstrução. Pegou um papel. Fez contas. Anotou números. E me entregou. Deu um conselho. Passe a noite olhando para o seu rosto.
Olhei para o dele. Olhei para os olhos. Para a testa sem citação em Latim nem Grego. Para os sapatos dei só uma passadinha de leve. E respondi.
Se passar noite olhando para o meu rosto - pela manhã troco de especialista. Procuro um psiquiatra. Agradeci. Sorri. Desci.
O Outro podia até ter errado. Vai ver se entende mais Perfeito do que é. Mas ao menos não me deu um papelzinho. Por certo - mais sábio. Vai lá saber o que pode fazer um insatisfeito.
Decidi. Ainda não. Vou recorrer às alternativas. Lembrei da amiga que me disse um dia que eu adoro alternativas. Estava certa. Está certa. Quem sabe daqui a alguns anos - se a Gravidade me permitir ao menos enxergar.
Sorri.
Joguei o papel fora e voltei para casa. Não sei se triste. Ou resignada - ou feliz. É preciso um tempo maior que uma noite para se saber.
Mas voltei sem a tal aconselhada tarefa noturna.
Brindei às habituais.
Leda Rezende
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