Sábado passado eu estava comendo porco no rolete na casa de nosso amigo e companheiro Alcione. Tinha também costela bovina no fogo de chão. E chope geladinho, é claro, que ninguém é de ferro.
Fiz uma gostosa viajem de ônibus, eu gosto de ônibus, foram quase 500 km apreciando a paisagem, e valeu a pena. Vocês não podem imaginar o que eu vi por lá. Caí duro! O Alcione mantém, por sua conta e risco, uma instituição psiquiátrica com duzentos, isto mesmo, duzentos internos. Ele comprou um colégio de padres salesianos, adaptou-o, e fez nele a Clínica de Repouso Dom Bosco, que agora está fazendo quarenta anos de existência.
Recebendo uma diária ridícula do SUS que o obriga à dar pensão hospitalar completa, incluindo medicamentos e honorários médicos para si e para a equipe, ele fornece a cada paciente cinco refeições por dia, mil refeições para os internos e quinhentas para os funcionários. Se não fosse pela inconveniência do horário, eu teria tomado um bandejão e almoçado lá, tão bem feita e cheirosa era a comida, planejada por uma nutricionista. A clínica mantém os internos limpos, asseados, praticamente cheirosos, mesmo aqueles débeis mentais que se babam e se urinam. Em todo o enorme recinto não senti o menor mau cheiro. A limpeza é impecável. As enfermarias-dormitórios são uma graça, cuidados de sua mulher, Júlia, que é aposentada como professora de atividades artísticas. Ela mesma compra os tecidos e faz lençóis e cobre leitos, tudo padronizado e vistoso.
Mas o que mais me tocou foi o tratamento humanizado dado àquela gente infeliz. Eles recebem um atendimento que, para sua condição de rejeitados pela sociedade e quase sempre pela família, confere a eles a dignidade e o conforto que não teriam em suas casas, e muito menos na rua. Lá dentro eles vivem melhor do que a classe C, donde provém alguns e infinitamente melhor do que aqueles, na sua origem, pobres e miseráveis. Quando ele anda pelos pátios se torna um verdadeiro pai ou irmão daquela gente, que o abraça, chama sua atenção, quer sua palavra de carinho. Há uma doida que diz ser casada com ele e o divide, numa boa, com sua esposa Júlia. Pelas apresentações que o Alcione faz nas Pizzas Literárias ele tem demonstrado um religiosidade forte, um caráter eminentemente cristão. Está sempre lendo suas poesias de fundo místico, espiritual, realçando o amor de Cristo. Podem crer, muito mais do que falar, ele pratica. Com quase uma santidade.
Para ajudar na administração ele conta com sua esposa Júlia, ativa e eficiente, e no quadro de funcionários especializados está sua filha Taísa, psicóloga. Mantém vários psiquiatras contratados liderando equipes e cada uma delas assume quarenta leitos. Ele sozinho acumula oitenta leitos, e não tem hora para correr para a clínica e atender as emergências de todo o hospital, além de visita regular aos sábados e uma passadinha aos domingos. O homem é de ferro! Não consigo assimilar como ele consegue tanto. É uma coisa de maluco!
Na hora do almoço, em sua casa, comendo comida baiana, vatapá, caruru e moqueca, tomando um vinho envelhecido e precioso, eu disse uma frase que vou repetir: - Aquele hospital tem duzentos doidos lá dentro e um doido aqui fora. Só pode ser. Precisa ser meio doido para assumir tanta responsabilidade, sem contudo perder a ternura. O homem é um doido lúcido, centrado, manso, igualzinho a este mesmo que nós vemos uma vez por mês, aqui neste nosso sarau literário. Sempre com esta cara de serenidade. Sempre em estado zen. Tranquilão.
Resta ainda contar pra vocês que sua casa é tão grande, que até acertar por onde andar, entrar e sair, precisa-se de GPS, ou mapa, ou guia turístico. Só o terreno tem quase três mil metros quadrados. E ressalte-se o gosto refinado dele e da esposa, tudo personalizado, e a paixão do Alcione por tapetes persas e outros. Há pinturas expressivas de Júlia nas paredes. Resta mencionar a cortesia de seu filho Vinícius, o único que ainda mora com ele. Seu outro filho é casado, mora aqui em São Paulo, e ainda não o conheço.
Este nosso personagem de carne, osso, cérebro e coração, chama-se Alcione Alcântara Gonçalves, é baiano, médico psiquiatra formado em Salvador. Também é formado em Direito, advogado com registro na OAB, e bacharel em Administração, com pós-graduação em Administração Hospitalar. Além de consagrado poeta, ainda é astrônomo amador e participa semanalmente de diletantes observações celestes, com seu grupo.
Todo mês ele vem participar da Pizza Literária em São Paulo. É mais assíduo do que os que moram aqui. Ele sai de Tupã, uma curiosa cidade do Estado de São Paulo. Há uns 80 anos, um pernambucano de sobrenome Souza Leão, cuja família tradicional ainda existe em Pernambuco, que embora rico, emigrou para o sudeste e veio plantar café. Pegou um pedaço de sua fazenda, planejou uma cidade, vendeu os lotes. Foi tão inspirado na sua investida urbanística, que num tempo em que ainda não havia automóveis, fez ruas largas e avenidas arborizadas no canteiro central. O trânsito de lá é de dar inveja. Estacionamento, uma facilidade. A cidade é ensolarada e luminosa, as ruas arborizadas, os passeios largos, a topografia levemente ondulada, e uma qualidade de vida inegável. Limpa, sem pichações, calçadas e ruas bem conservadas. Não há mendigos, nem menores de rua. E tem um comercio pujante, e segundo soube, muitas indústrias.
Pois é, falei do doido manso, no bom sentido. E falei de boca cheia. E não foi cheia de carne com farofa, mas de orgulho de ter um colega assim.
Geovah Paulo da Cruz
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Agradecemos sua atenção. Se possível deixe informações para fazermos contato.