Morava na casa velha de paredes cinzas perto da esquina de
uma rua qualquer, junto com o avô e um tio que não fazia a mínima diferença.
Desde que se conhecera por gente vivia ali naquela casa sombria, cheirando a
gente velha e a pinga barata. Não entendia porque com ele era assim, porque, se
todos os outros meninos tinham pai, mãe, irmãos e um cachorro, com ele era
diferente.
Um avô rude beirando a estupidez, a barba sempre por fazer,
uma camiseta suada por baixo da camisa que também nunca trocava. Não adiantava
ser bom ou ruim, era tratado como se fosse de favor, aos gritos e palavrões,
como se aquele comportamento espantasse o cheiro de urina seca que ele exalava.
Um dia perguntara porque não conhecia sua mãe e a resposta não foi boa. O velho
chamou a mãe do garoto de vagabunda, à toa e desandou uma série de ofensas. No
final ainda o acusou de ser o filho dela.
Não era possível e nem acreditava que a mãe fosse assim,
tudo o que o avô gritara na sala. Mas ainda venceria o velho, pegaria suas
coisas e iria embora, assim, simples assim. Mesmo não sendo tão adulto para
trabalhar, nem muito criança para fugir. Não aguentava mais aquela casa, aquela
mesmice, o avô maldizendo a vida, o tio, sempre bêbado, caindo pelos cantos da
casa, arrotando no meio das refeições.
O tio nunca tomava partido de nada, aliás, muitas vezes
sequer sabia aonde estava, somente existia para beber, comer o que visse pela
frente quando sentia fome, às vezes até sem usar o garfo. O menino olhava
assustado e não via a hora de ir dormir em seu quarto. Tancava a porta por
dentro com medo do zumbi em que o tio se transformava. Às vezes, tarde da noite
em que não conseguia dormir, ouvia o tio reclamar da vida, urinando de porta
aberta e voltando para a sala do próximo gole.
Bastava amanhecer para o avô arrebentar a porta de pancadas,
e lá começava tudo de novo. Tomar café preto em copo sujo, comer o pão
amanhecido, pegar os cadernos e ir para a escola sozinho, a pé, seis quadras
acima. Um dia iria ganhar do avô, subir ao sótão e abrir o velho baú da
família...
Voltou da escola mais cedo, ainda não eram cinco horas. A
casa estava mais silenciosa do que de costume. Adentrou; o tio deitado de
barriga para baixo, roncava aos borbotões, um pé calçado e o outro com a mesma
meia velha e furada. Andou pelo corredor até o quintal e encontrou o avô na
cadeira de balanço.
Barba por fazer, os olhos parados e fixos em qualquer lugar.
Nunca lembrara ter visto o avô de barba feita ou penteado. Foi pedir a bênção.
Beijou uma mão fria e cinzenta, assustou-se, gritou, pulou para trás enquanto a
cabeça do velho pendia para o lado. Não sabe quanto tempo ficou olhando,
pasmado, sem saber o que fazer. Lembrou do tio bêbado.
Foi ao quarto, mexeu, chamou, o tio xingou, virou de lado e
continuou roncando como um porco velho. O menino voltou, sentou no degrau da
escada e ficou a contemplar o velho. E agora? Lembrou do baú proibido,
terminantemente proibido. Correu e subiu as escadas para o sótão, contemplou um
baú antigo, fechado a cadeado. A chave! Desceu correndo as escadas e foi ter
com o avô, que continua com o olhar rude, como se fosse novamente gritar, mas o
neto fala mais alto: “Você não pode comigo agora!”
Mergulhou a mão direita dentro da camiseta suja e no meio de
um monte de pelos grisalhos achou a chave. Conseguiu retirá-la, não sem
dificuldades enquanto o avô babava em sua mão. Saiu correndo limpando a mão na
blusa e subiu as escadas de novo. De frente para o baú, o coração aos saltos,
tremia ao colocar a chave no cadeado enferrujado. Fez força, conseguiu girá-la,
soltou o cadeado. Colocou as duas mãos na tampa.
O coração salta pela boca. A dúvida: abre ou não abre? Tenta
pensar, mas as mãos são mais rápidas e levantam a tampa do baú proibido. Olha
para dentro, espanto! Fica paralisado como se o avô morto estivesse agora ao
seu lado.
Melhor não saber o que tem dentro do baú, melhor ainda teria
sido não querer saber o que havia dentro do baú. Melhor teria sido não ter a
curiosidade e a coragem de abri-lo. Melhor fechar, fechou. Desce do sótão,
corre ao cadáver do avô, totalmente paralisado, frio, inerte e recoloca a chave
no peito dentro da camiseta. O tio continua a roncar sem a percepção do mundo
ao seu redor. Corre ao quarto, coloca algumas roupas na mala da escola e sai
para a rua sem fechar a porta.
Anoitece, recebe no rosto o vento fresco da noite, livre,
livre para a vida nova. Deixa o avô morto na cadeira de balanço, deixa o tio
bêbado que só vai descobrir a morte do velho no dia seguinte e deixa o baú.
Baús, nunca mais...
ROBERTO ANTÔNIO
ANICHE
ANICHE MEXE COM A CURIOSIDADE DO LEITOR DO PRINCIPIO AO FIM DO CONTO, E NO SEUS PERMEIOS ENTRELAÇA ELEMENTOS SIMPLES QUE FICAM POVOANDO NOSSA CABEÇA COM A TECNICA DA REPETIÇÃO BEM
ResponderExcluirPOSICIONADA ENTRE FRASES NOVAS ORIENTANDO O DESENROLAR DO CONTO PARA ONDE O LEITOR MENOS O ESPERA.
MUITOS PARABÉNS. LUIZJORGE.