10/01/2015

BAÚ


Morava na casa velha de paredes cinzas perto da esquina de uma rua qualquer, junto com o avô e um tio que não fazia a mínima diferença. Desde que se conhecera por gente vivia ali naquela casa sombria, cheirando a gente velha e a pinga barata. Não entendia porque com ele era assim, porque, se todos os outros meninos tinham pai, mãe, irmãos e um cachorro, com ele era diferente.

 
Um avô rude beirando a estupidez, a barba sempre por fazer, uma camiseta suada por baixo da camisa que também nunca trocava. Não adiantava ser bom ou ruim, era tratado como se fosse de favor, aos gritos e palavrões, como se aquele comportamento espantasse o cheiro de urina seca que ele exalava. Um dia perguntara porque não conhecia sua mãe e a resposta não foi boa. O velho chamou a mãe do garoto de vagabunda, à toa e desandou uma série de ofensas. No final ainda o acusou de ser o filho dela.

 
Não era possível e nem acreditava que a mãe fosse assim, tudo o que o avô gritara na sala. Mas ainda venceria o velho, pegaria suas coisas e iria embora, assim, simples assim. Mesmo não sendo tão adulto para trabalhar, nem muito criança para fugir. Não aguentava mais aquela casa, aquela mesmice, o avô maldizendo a vida, o tio, sempre bêbado, caindo pelos cantos da casa, arrotando no meio das refeições.

 
O tio nunca tomava partido de nada, aliás, muitas vezes sequer sabia aonde estava, somente existia para beber, comer o que visse pela frente quando sentia fome, às vezes até sem usar o garfo. O menino olhava assustado e não via a hora de ir dormir em seu quarto. Tancava a porta por dentro com medo do zumbi em que o tio se transformava. Às vezes, tarde da noite em que não conseguia dormir, ouvia o tio reclamar da vida, urinando de porta aberta e voltando para a sala do próximo gole.

 
Bastava amanhecer para o avô arrebentar a porta de pancadas, e lá começava tudo de novo. Tomar café preto em copo sujo, comer o pão amanhecido, pegar os cadernos e ir para a escola sozinho, a pé, seis quadras acima. Um dia iria ganhar do avô, subir ao sótão e abrir o velho baú da família...

 
Voltou da escola mais cedo, ainda não eram cinco horas. A casa estava mais silenciosa do que de costume. Adentrou; o tio deitado de barriga para baixo, roncava aos borbotões, um pé calçado e o outro com a mesma meia velha e furada. Andou pelo corredor até o quintal e encontrou o avô na cadeira de balanço.


Barba por fazer, os olhos parados e fixos em qualquer lugar. Nunca lembrara ter visto o avô de barba feita ou penteado. Foi pedir a bênção. Beijou uma mão fria e cinzenta, assustou-se, gritou, pulou para trás enquanto a cabeça do velho pendia para o lado. Não sabe quanto tempo ficou olhando, pasmado, sem saber o que fazer. Lembrou do tio bêbado.
 

Foi ao quarto, mexeu, chamou, o tio xingou, virou de lado e continuou roncando como um porco velho. O menino voltou, sentou no degrau da escada e ficou a contemplar o velho. E agora? Lembrou do baú proibido, terminantemente proibido. Correu e subiu as escadas para o sótão, contemplou um baú antigo, fechado a cadeado. A chave! Desceu correndo as escadas e foi ter com o avô, que continua com o olhar rude, como se fosse novamente gritar, mas o neto fala mais alto: “Você não pode comigo agora!”

 
Mergulhou a mão direita dentro da camiseta suja e no meio de um monte de pelos grisalhos achou a chave. Conseguiu retirá-la, não sem dificuldades enquanto o avô babava em sua mão. Saiu correndo limpando a mão na blusa e subiu as escadas de novo. De frente para o baú, o coração aos saltos, tremia ao colocar a chave no cadeado enferrujado. Fez força, conseguiu girá-la, soltou o cadeado. Colocou as duas mãos na tampa.

 
O coração salta pela boca. A dúvida: abre ou não abre? Tenta pensar, mas as mãos são mais rápidas e levantam a tampa do baú proibido. Olha para dentro, espanto! Fica paralisado como se o avô morto estivesse agora ao seu lado.

 
Melhor não saber o que tem dentro do baú, melhor ainda teria sido não querer saber o que havia dentro do baú. Melhor teria sido não ter a curiosidade e a coragem de abri-lo. Melhor fechar, fechou. Desce do sótão, corre ao cadáver do avô, totalmente paralisado, frio, inerte e recoloca a chave no peito dentro da camiseta. O tio continua a roncar sem a percepção do mundo ao seu redor. Corre ao quarto, coloca algumas roupas na mala da escola e sai para a rua sem fechar a porta.

 
Anoitece, recebe no rosto o vento fresco da noite, livre, livre para a vida nova. Deixa o avô morto na cadeira de balanço, deixa o tio bêbado que só vai descobrir a morte do velho no dia seguinte e deixa o baú.

 
Baús, nunca mais...

 
ROBERTO ANTÔNIO ANICHE

 

Um comentário:

  1. ANICHE MEXE COM A CURIOSIDADE DO LEITOR DO PRINCIPIO AO FIM DO CONTO, E NO SEUS PERMEIOS ENTRELAÇA ELEMENTOS SIMPLES QUE FICAM POVOANDO NOSSA CABEÇA COM A TECNICA DA REPETIÇÃO BEM
    POSICIONADA ENTRE FRASES NOVAS ORIENTANDO O DESENROLAR DO CONTO PARA ONDE O LEITOR MENOS O ESPERA.
    MUITOS PARABÉNS. LUIZJORGE.

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