I
Foi despertado do torpor pelo som estridente da
campainha. Respirava com dificuldade. Tentou mover-se, mas os membros não
encontraram apoio e sentiu-se oscilando como um pêndulo. Uma dor excruciante
dava a impressão de que sua cabeça estava sendo arrancada. Desesperado, abriu
os olhos e levou as mãos ao pescoço; só então se avivou a lembrança do que
tinha ocorrido.
II
Sempre agiu com retidão; intuitivamente, concebeu
normas de conduta que convergiam para os preceitos de Ulpiano: “Viver
honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que lhe pertence.” Viveu
honestamente e foi vítima de toda sorte de esperteza, nunca prejudicou ninguém
e viu-se maltratado até pelos que mais amava, empenhou-se em dar a cada pessoa
o que lhe era devido e recebeu bem menos do que merecia. Desgostoso, alimentou
o desejo de sumir do mundo.
Primeiro anteviu um desfecho heroico, morreria de arma
na mão, levando consigo um punhado de políticos infames; porém foi demovido
desse intento pela convicção de que, fazendo assim, beneficiaria a sociedade
que o renegava. Indispôs-se então com a sociedade e passou a imaginar-se
atentando contra a multidão. Finalmente, abandonou esse devaneio odioso ao
concluir que o verdadeiro culpado era Deus, por ter criado a humanidade.
Aprofundando a reflexão, lembrou-se de um documentário sobre as orcas; nele,
uma foca era arremessada longe repetidas vezes antes de ser devorada.
Vislumbrou nessa cena a metáfora representativa de sua vida e pensou: “Deus é a
orca, eu sou a foca; brinca com meu sofrimento, tortura-me antes de acabar
comigo! Julga-se todo-poderoso, mas não tem o poder de manter-me vivo se eu não
quiser. Meu suicídio será uma desforra contra quem me criou para sofrer!”
Estava resolvido, diria não aos desígnios divinos
pondo fim à vida. Por tratar-se de uma contenda com Deus, buscou inspiração na
Bíblia: tal como Aitofel e Judas, decidiu enforcar-se.
III
Ficou perplexo ao constatar que ainda vivia. Na
parede, o relógio atestava ter transcorrido quase meia hora desde que havia
derrubado a cadeira sobre a qual se pôs de pé com o laço no pescoço. Pensava em
fazer algo para apressar a morte quando sentiu um cheiro forte de fezes e
urina; teve então um sobressalto, sem dúvida o fedor vinha dele. Não previu que
o enforcamento podia causar incontinência das vísceras excretoras; ao matar-se,
tencionava exibir uma dignidade socrática, mas como fazê-lo exalando a fetidez
de dejeções? Perante seu bostífero cadáver, o asco se juntaria ao desprezo; não
admitia passar por tal vexame, não admitia sujeitar-se a tanta humilhação, nem
depois de morto. Decidiu, portanto, retroceder. Após árduas tentativas,
convenceu-se da impossibilidade de desfazer o nó. A corda estava atada na
coluna de um mezanino; pensou em usá-la para subir, porém se esforçou em vão,
não lhe restava vigor físico para tanto. Julgou por fim que, balançando o
corpo, podia alcançar uma pequena mesa e arrastá-la com os pés para perto de
si; pôs-se a oscilar ao longo de arcos cada vez maiores e estava prestes a
tocar o tampo do móvel, no entanto sentiu que o ar lhe faltava, pois havia
retesado o laço quando tomou impulso. Largou-se inerte. O vai e vem da
oscilação trouxe-lhe à mente a cena da foca sendo jogada de um lado para outro;
buscando entender por que continuava vivo, concluiu que não decidia sequer
quanto à sua morte e lançou ao Céu um pedido de clemência. Naquele instante,
conformou-se com seu destino de foca.
IV
A encarregada da limpeza tocou a campainha
insistentemente, ninguém atendeu. Tornou a fazê-lo algum tempo após e também
não obteve resposta; decidiu então olhar através de uma vidraça. Nunca
esquecerá a cena horrenda; quando seus olhos se acostumaram com a luz escassa e
distinguiram o corpo que pendia no meio da sala, ela gritou.
Para surpresa de todos, o enforcado ainda vivia; o
socorro chegou logo depois de ter perdido os sentidos pela segunda vez.
V
Com o entusiasmo típico dos que estão iniciando, a
jovem médica falou:
— Foi um milagre. Ficou longo tempo pendurado com a
corda no pescoço, mas está vivo e sem sequelas!
— Os milagres são filhos da ingenuidade, doutora; são
justificativas dos tolos para aquilo que não sabem explicar — retrucou com ar
professoral o cirurgião responsável pela enfermaria. — Houve época em que era
comum o enforcado passar por demorada agonia antes de morrer; às vezes, o
carrasco buscava abreviar-lhe o sofrimento tracionando vigorosamente suas
pernas para baixo. Há relatos de condenados que sobreviveram e foram enforcados
novamente. Ante a possibilidade de o criminoso permanecer vivo, algumas
autoridades ordenavam que, depois de ser retirado da forca, ele fosse
decapitado ou tivesse o coração extraído do peito. Coube à Medicina tornar o
enforcamento mais eficiente, garantindo morte rápida e menos sofrida.
— O que disse? O conhecimento médico foi usado com
intenção de matar?
— Por que a surpresa? Quem tem mais intimidade com a
morte do que um médico? Dou-te como exemplo o doutor Guillotin, que persuadiu
os revolucionários franceses a adotarem a guilhotina, máquina de matar que lhe
eternizou o nome; esse piedoso médico possibilitou que milhares de pessoas
fossem executadas de forma menos cruel, pois o enforcamento não garantia morte
imediata e, dependendo da habilidade do carrasco, a decapitação por machado ou
espada podia requerer vários golpes.
— Como os médicos contribuíram para tornar o
enforcamento menos terrível?
— As recomendações versam essencialmente sobre o
tamanho da queda e a posição do nó. Durante o enforcamento, a força imposta à
corda deve ser aplicada de modo instantâneo e com intensidade que possibilite
matar sem decapitação, poupando a plateia de ver a cabeça ser brutalmente
arrancada do corpo; isso é feito submetendo o condenado a uma queda cuja
extensão é ditada pelo comprimento da corda e pode ser inferida a partir de
tabelas que levam em consideração o peso corpóreo. Por outro lado, estudos
necroscópicos definiram que o nó deve ser posicionado sob o queixo, pois assim
a cabeça é forçada para trás, resultando em fratura da coluna vertebral. É
improvável que um suicida planeje seu enforcamento em conformidade com
diretrizes cientificamente definidas; afirmo, portanto, que não houve milagre,
teu paciente sobreviveu porque não teve competência para matar-se. Estás de
acordo?
Com um meneio de cabeça, ela respondeu
afirmativamente; porém as pessoas próximas ouviram-na sussurrar:
— Foi milagre sim, o Todo-Poderoso decretou que
sobrevivesse...
LUIZ COUTINHO DIAS FILHO
PROSA VENCEDORA DO TROFÉU "O SABIÁ"
XXVII CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES
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