Em minha atuação no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo, tenho observado os espetáculos da tecnologia cardíaca moderna e também o “rastro” psiquiátrico que as acompanha. Notamos, por exemplo, as modificações de personalidade que acomete muitos que se submetem a transplante cardíaco, a ansiedade que acompanham os que se recuperam de paradas cardíacas, portadores de marca-passos e por aí. Uma destas conseqüências psiquiátricas chamou-me a atenção: a que acomete alguns dos que tiveram implantado um desfibrilador portátil cardíaco.
A morte súbita de um ser humano é das mais dramáticas manifestações de afecções cardíacas, por não dar tempo sequer do acometido “desarrumar suas gavetas”. Despede-se da vida deixando uma lacuna de desespero, seja no âmbito familiar, seja em seus negócios. Os desfibriladores portáteis são próteses maravilhosas que, implantadas no subcutâneo do paciente e ligadas diretamente ao coração, identificam a fibrilação ventricular e promovem a cardioversão “in loco” salvando assim a vida do indivíduo.
A maior parte dos pacientes sofre a descarga elétrica da cardioversão quando em estado já comatoso, mas alguns pacientes que as recebem sem estarem em estado de coma, sentem-na de forma extremamente sofrida. Dá para imaginar o que significa um choque de 400 joules dentro de seu mediastino. Muitos descrevem-na como um coice de mula no peito. Quase todos estes pacientes retornam ao cardiologista solicitando a retirada da prótese, quando então são para mim encaminhados.
Estes pacientes apresentam-se extremamente ansiosos, têm medo das descargas e transformam-se em pessoas irritadiças e impacientes. Muitos “sentem” as descargas embora não sejam registradas pelos aparelhos, numa estranha forma de alucinação que não pode ser classificada como sinestesia por não ter como eleição um órgão interno e sim uma prótese implantada. Nos primeiros casos, sempre tinha a impressão de já ter “passado por este caminho”; tinha sempre a sensação de “de ja vu”, o que era impossível, por se tratarem de casos absolutamente pioneiros.
Mika Waltari, meu romancista predileto, no romance de nome “O Segredo do Reino”, descreve um personagem que, em busca da verdade, abandona a vida de orgias romanas e parte para Jerusalém, chegando nesta cidade numa tarde em que se encontravam três cruzes no gólgota sendo que em uma estava crucificado Jesus Cristo. Pelos acontecimentos posteriores, entende que quem tinha sido crucificado foi algo mais que um ser humano e começa a pesquisar a vida de Jesus, suas pregações e seus milagres. Em determinado momento passa a entrevistar o Lázaro e, ao contrário do que esperava, defronta-se com um indivíduo amargurado e taciturno. Ao lembrar que ele deveria ser grato por ter tido nova oportunidade de viver, Lázaro respondeu que a humanidade, por todo o sempre, iria se lembrar deste milagre de Cristo mas, esqueceria de refletir que ele seria a única pessoa que morreria duas vezes, já que não tinha recebido a imortalidade.
Voltando aos meus pacientes, D.Marta (nome fictício) tentava me convencer que o melhor para ela seria a retirada do cardioversor portátil por não suportar mais os choques - a grande maioria alucinóides - e contava-me situações estapafúrdias como, por exemplo, sofrer uma descarga durante um casamento, quando a igreja toda se assustou com seu grito. Lembrada que cada manifestação da prótese poderia ser uma ressurreição respondeu-me:
“E quantas vezes terei que morrer, doutor?”
Então meu pensamento dirigiu-se à obra do grande escritor norueguês e não poderia deixar de batizar esta síndrome como “Síndrome de Lázaro”, a síndrome dos que não querem morrer mais de uma vez.
Carlos Augusto Ferreira Galvão
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