Imediatamente,
lembrei-me do piano de cauda pendurado de cabeça para baixo no Tate Gallery, no
bairro de Pimlico, em Londres e que assusta qualquer um pelo inesperado, pois
seu teclado parece se soltar com um barulho estridente desagradável. Em
seguida, cai a tampa do piano ao som aleatório de suas cordas expostas. Minutos
depois, a tampa e o teclado se recolhem, para daí a dois ou três minutos
repetir o processo. É conhecido como ‘Concerto para Anarquia’, da artista alemã
Rebecca Horn.
A
curiosidade tomou conta de mim e fui perguntar na Recepção do hospital o porquê
da cama. A funcionária deu um sorriso e apontou para uma série de panfletos
explicativos, em vários idiomas. Havia um em português, que passo a
transcrever:
“A Cama Voadora
(atualização – 2013)
“Em maio de 1970
deu entrada nesta Instituição um menino de nome Leonard, filho do magnata da
indústria metalúrgica Paul George Gentiluomo. Este, por sua vez, tinha herdado
sua indústria do pai, de origem italiana, oriundo de Milão.
“Leonard estava
muito doente, com um câncer ósseo altamente agressivo. Os médicos ortopedistas
e os oncologistas tentaram de tudo para evitar que o câncer se espalhasse, mas
desde o começo sabiam que seria uma batalha perdida se não amputassem a perna
direita do garoto.
“Ainda hoje
existe um tabu em relação a amputações e não era diferente naquela época.
Quando foi indicada, o Sr. Gentiluomo não aceitou e quis retirar Leonard do
hospital. Um grande amigo dele o convenceu de que nossa instituição era um hospital
de referência para estes casos, mas, mesmo assim, sugeriu que chamasse os
melhores profissionais da área. Apenas um aceitou o convite, os outros não,
alegando que Leonard já se encontrava nas mãos competentes dos médicos daqui. O
oncologista não só confirmou a necessidade da amputação da perna, como achava
que estava indicada a amputação da outra perna também, para melhorar suas
chances de sobrevida.
“Inconformado
com a situação, o Sr. Gentiluomo, o Paul, decidiu contar para o filho da
cirurgia que teria de enfrentar. Internado havia três meses, o menino de sete
anos já era querido por todos do hospital. Andava de muletas pela instituição,
visitando pacientes internados, conversando com acompanhantes, injetando ânimo
nos menos esperançosos e jamais falando da sua própria doença. Dava-se muito bem
com a enfermagem, que o adorava.
“Seu pai, sua
mãe e uma psicóloga foram conversar com ele. Deitado no leito, ouviu o veredito
de que iria perder as duas pernas. Não chorou, apenas empalideceu. Perguntou se
sentiria muita dor e, não querendo esconder nada dele, disseram-lhe que sim,
mas havia medicações para minimizá-la.
“Leonard,
sabendo que não iria mais poder andar, fez um pedido inusitado ao pai: queria
uma cama que voasse. Paul prometeu que estudaria a sério o seu pedido. Sua mãe
achou a proposta impossível, porém Paul a calou, reiterando que iria estudar a
sua solicitação.
“O menino foi
operado e ficou uma semana no nosso Centro de Cuidados Especiais, hoje
conhecido como Centro de Terapia Intensiva. Neste interim, Paul voltou à sua
fábrica e convocou uma reunião com o seu grupo de engenheiros. Explicou o que
queria e pediu que no prazo mais curto possível apresentasse uma solução, sem
medir custos.
“Os engenheiros
vieram com a seguinte sugestão: colocariam molas hidráulicas nas quatro pernas
da cama hospitalar que, acionadas eletricamente, dariam uma boa sensação de
movimento, como se ela estivesse flutuando, levitando. Diante dos pés da cama,
fixariam uma tela branca de grandes proporções e, através de retroprojeção,
Leonard poderia viajar pelo mundo. Na época, já existiam muitos filmes e
documentários, principalmente da National Geographic e da BBC que, tinham
certeza, ele iria apreciar. Paul aprovou a ideia e partiram para a sua
execução..
“Os médicos e a
Instituição deram total aprovação ao projeto e, uma semana depois que Leonard
voltou ao seu quarto, a cama foi trocada. Bem recuperado da cirurgia a que fora
submetido e com pouca dor, foi-lhe entregue um controle para acionar a cama e a
retroprojeção. Logo mais ele estava se deliciando com a cama voadora que
viajava pelo mundo todo, inclusive pelos mares mais profundos.
“O garoto
desenvolveu metástases pulmonares e não teve condições de ir para casa. A
quimioterapia e radioterapia a que se submeteu foram deixando suas marcas, e
ficou careca. Seu quarto estava sempre repleto de visitas que lhe traziam mimos
de toda espécie. As crianças aproveitavam para também viajar na cama voadora.
“Leonard faleceu
em 15 de maio de 1971, um ano depois da sua internação. Paul ficou
impressionado com a dedicação de todos da nossa Instituição e resolveu fazer
uma doação ao hospital, em nome de Leonard. Foi então construída uma nova ala,
na verdade, um prédio de quatro andares, devidamente equipado com o que havia
de mais atual na área de Oncologia Pediátrica. Impôs apenas uma condição: que a
cama voadora fosse colocada em exposição permanente no saguão do hospital.
Assim foi feito.
“Recentemente, a
cama voadora foi recoberta com Ecoglas, um spray de vidro líquido que seca no ar,
com uma espessura bem menor que um fio de cabelo. Produz uma impermeabilização
que facilita muito a limpeza, não sendo mais necessária a troca dos lençóis e
fronhas daquela cama, bastando passar um pano úmido para retirada do pouco pó
que fica depositado.
“Durante todos
estes anos, Paul tem mantido a Casa Leonard Gentiluomo com os equipamentos mais
modernos para tratamento de câncer. Faleceu em 2012, vítima também de um câncer
ósseo.
“Leonard e Paul
serão sempre lembrados e a Instituição é eternamente grata por tudo que fizeram,
sem querer nada em troca, a não ser a presença da Cama Voadora neste saguão!”.
Dobrei
o panfleto com cuidado e reverência e o enfiei no bolso. Olhando para cima, vi
a cama voadora com outros olhos. Juro que me deu a impressão de que estava
prestes a levantar voo. Esbocei um sorriso. Sem sombra de dúvida, era um objeto
diferente como lembrança desta família que recebeu tanto e também soube
reconhecer e dar muito em troca, in memoriam
de um filho perdido tão precocemente...
WALTER
WHITTON HARRIS
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