De manhãzinha
seu Pedro descia os três degraus de escada, fechava a porta com chave. Duas
voltas. E seguia caminhando cabisbaixo como perseguido pelos sons da flauta que
tocava nas horas de folga.
Sempre aquele soprar enfadonho, semitonado,
choroso e cabisbaixo como ele quando caminhava para o centro da cidade, onde
funcionava a barbearia em que trabalhava há 40 anos, ali debaixo do antigo
Grande Hotel do Pará.
Quando seu Pedro
voltava, já começando a noite, alguns gatos atravessavam a rua, vindos do
terreno baldio em frente e, miando, subiam pelo telhado de sua casa, entre as
ervas ali dependuradas e telhas soltas cheias de limo.
Com a noite alta
os gatos atravessavam a rua e retornavam às suas moradas no terreno baldio do
outro lado da rua. Então terminava a folga dos ratos. A flauta se calava e o
pessoal da república, a uma quadra dali, - Joça, Edílson Calouro, João
Silvasantos, Veríssimo, Alípio e Eduvaldo – acomodavam-se para estudar. Eu
podia ver as notas correndo pela vala em meio à água rala que pouco cobria o
lodo do fundo. Na rua tinha um cachorro vagabundo que vez por outra pulava na
vala atrás delas, e as engolia de um só fôlego. Era ele fazer isso que a
estudantada saía pela porta da sala e divertia-se ouvindo-o latir. Uns latidos
meio miados, meio zunir de ratos, meio barulho de tesoura cega cortando cabelo.
Veríssimo era o
mais moleque e o atiçava com uma toalha. Certa vez foi tanta a algazarra que
seu Pedro saiu na porta de sua casa e tocou na flauta um fado tão lamento, que
as notas saíram da vala, da boca do cachorro, do barulho de uma rasgamortalha,
e coloridas e em fila retornaram para a flauta. Seu Pedro fechou a porta e,
mais depois, amanheceu. Tudo foi tão rápido que os degraus não tinham se levantado
quando ele abriu a porta e desceu. Noutro dia eu soube que ele caíra e fora
levado para o hospital. E que mais tarde toda a vizinhança o fora visitar. Uns
levaram caqui, outros restos de mar, outros nacos de sol. Eu levei alguns gatos
pardos e malhados e um rato, o que costumava cantar mais alto. Não consegui
entrar.
À noitinha seu
Pedro morreu. A vala foi aterrada pela prefeitura. Chegou o carnaval e os gatos
viraram tamborins. A flauta ficou pendurada na sala, guardando notas
enferrujadas. Até que a casa ruiu. Os estudantes concluíram seus cursos e
sumiram. Eu fiquei sozinho, escrevendo contos irreais sobre flautas, gatos,
ratos, cães e valas. Coisas em que seu Pedro, também sozinho, nunca acreditou.
- Seu Pedro era
canhoto?
LUIZ JORGE FERREIRA
MENÇÃO
HONROSA PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2014
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