Ele ganhara aquele quadro. Presente de um paciente agradecido pelos
préstimos profissionais recebidos. De fato, muito se dedicara àquele caso, de
resto doença grave e que exigira sua atenção e o melhor de suas capacidades
profissionais. De imediato simpatizou com o quadro, motivo que o levou a
colocar em frente à sua poltrona predileta, naquele cantinho de sua casa, onde
quase todos os dias sentava-se e descansava após o jantar coroando um dia, como
sempre, de muito trabalho. Olhando para aquele quadro deixava flanar seus
devaneios....
Foi assim que muitas histórias se sucederam. Num dia naquela casa,
quase um casebre, como a percebia na imagem impressa naquela tela, morou uma
família pobre, mas feliz. Com muita luta e trabalho sustentavam seu único filho
para o qual sonhavam uma vida confortável, o que, de fato, veio a se suceder,
pois hoje um advogado famoso. Noutro dia ali habitou uma viúva e seus vários
filhos. O que o marido deixara mal dava para sobreviverem, mas ainda assim ela
orava pela sua alma, pois embora pobres foram felizes enquanto ele esteve na
sua vida. Noutro dia, aquela casa foi habitada por um indivíduo sem escrúpulos,
quase um tirano que maltratava sua esposa e filhos. Também ali habitou um
alcoólatra e que do mesmo modo desgraçava a vida daquela família.
Mas, teve dia que ali naquela casa há muito ninguém habitava e só
almas errantes apareciam à noite, como para relembrar da tragédia que a toda
família dizimou...
Também naquela igreja, muitas histórias se sucederam. Vidas que se
uniram sob as bênçãos de Deus. Muitas assim continuaram, mas outras, apesar das
juras de amor eterno, não sobreviveram ao tempo. Naquele confessionário quantos
pecados foram contados e perdoados?
Crianças ali foram batizadas. Muitas vezes o pároco fora chamado para
dar a extrema unção a um moribundo. E assim se assistia o começo e o fim desta
vida terrena.
E aquele cavaleiro, personagem também daquele quadro, onde iria
com tanta pressa? Por que a mulher o espreitava postada junto a casa?
Várias foram as histórias sobre eles. Em algumas elas se
relacionavam com os personagens da casa ou da igreja. Em outra era só alguém de
passagem naquele local, sem que se soubesse de onde vinha e para onde ia.
Muitas vezes em seus devaneios imaginou um amor secreto entre aquela mulher e o
cavaleiro que se afastava apressado. Seriam amantes? A sua pressa era na
verdade uma fuga? Fugia do que ou de quem? Em outros devaneios aquela santa
mulher apenas via seu marido, um homem honesto e trabalhador, montado no seu
cavalo conduzir para um campo a tropa que naquele momento ia à sua frente.
E assim de histórias em histórias nasceu nele o desejo de ir
conhecer aquele lugar que inspirara o autor que, com pinceladas firmes,
transmitiu sua emoção àquela tela. Como
tinha espírito investigativo, ótimo clínico que era, logo chegou ao seu
intento. Na primeira oportunidade pôs-se em marcha.
Chegando
ao local, uma área rural, não demorou em reconhecer os elementos da tela. Lá
estavam o casebre, a igreja e todos os outros elementos circunstanciais tão bem
representados naquela tela. Notou que, porém, faltavam o cavaleiro e o cavalo
alazão. Passou um bom tempo absorto em seus pensamentos até que, porém, foi
despertado por um caboclo montado em um velho burro.
Humildemente este lhe falou:
— Desculpe, moço. Vos mercê carece de alguma coisa?
Seria aquele burro o que imaginou ser um grande cavalo alazão?
E aquele caboclo seria o que sonhou ser um cavaleiro?
Em seguida o pobre caboclo, talvez impressionado com a postura altiva
do seu interlocutor, disse:
— Não quer entrar e tomar uma xícara de café?
Diante do convite inesperado, hesitou e rapidamente se lembrou de
um passado distante onde cultivou durante muito tempo um amor platônico que
desapareceu quando conheceu a realidade triste e cruel que a jovem amada
carregava. Havia desaparecido toda a magia daquele amor que, até então, só ele
sabia que existia. Por muito tempo guardou marcas desta decepção. Pensando que
ao adentrar àquela casa poderia transformar suas ilusões em dura e triste
realidade, preferiu não se arriscar.
Então disse ao pobre caboclo:
— Agradecido, mas não posso entrar. Tenho pressa de regressar.
Assim falou e assim o fez.
No dia seguinte e em muitos outros voltou a sentar-se naquela
poltrona e a olhar aquele quadro, do qual quase chegou a fazer parte da cena, e
nestas ocasiões se punha a sonhar. Aos poucos descobriu que não eram sonhos. Na
verdade, como finalmente com o tempo veio a saber, eram histórias reais,
vividas, vistas ou ouvidas, que agora, talvez pelos estímulos que o quadro
despertava, afloravam das profundezas de sua memória, onde durante muito tempo
permaneceram adormecidas.
MÁRIOMÁRIO SANTORO JUNIOR
VENCEDOR PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2017-2018
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