No mesmo cesto de lixo a orelha de Van Gogh, a perna do Capitão
Acab de Moby Dick e a mão do Capitão Gancho. Mesmo destino.
Fiquei por aqui matutando se Van Gogh cortando a própria
orelha estaria mais que obedecendo a ordens de um mundo alucinado e impiedoso.
Vedando a ferida que ficou com um pano encardido, representado num
auto-retrato, queria apenas impedir que os sons que poderiam invadir sua cabeça
ocupassem o lugar de suas imagens internas, de suas cores fulgurantes.
O tamponamento da orelha, mais do que qualquer coisa,
impediria que lhe escorressem para suas telas e para o mundo os roxos e negros
de suas noites eternas e os amarelos dos trigais, dos seus girassóis e de sua
cadeira de palha.
Não tendo à mão uma baleia branca, no caso do Capitão Acab
ou um crocodilo, no caso do Capitão
Gancho, arrancou a própria orelha, criando uma ferida na sua deslumbrante
inspiração. Foi-se a orelha, ficou o auto-retrato que, certamente, já foi
objeto de mil interpretações, de matéria de livros, de ensaios brilhantes e de
teses e mais teses.
Quantas vezes nos auto-mutilamos, afogando sentimentos mal
disfarçados ou mal compreendidos, para que não nos transborde a alma?
Quantas vezes recorremos a nossas baleeiras e a nossos
navios-piratas neste afã de temer e de enfrentar tempestades?
Melhor baleeiras e navios-piratas à mercê de ventanias e
furacões, oferecendo algum abrigo no mar encapelado do que nada. Melhor que
casquinhas de nozes flutuando perdidas
depois do naufrágio. Melhor que
navios-fantasmas. E assim se associam o cego e o surdo-mudo, o gatuno e o
vigarista, o coxo e o maneta, o roto e o esfarrapado, num pacto de solidão e
silêncio.
Fica difícil acreditar que o mundo não é assim, que está
assim. Ilha universal cercada de violência por todos os lados. Toda crueldade
humana vindo à tona num mar cibernético tornado dialógico em comunicação
constante através do celular que, como diriam nossos avós, já virou cachaça,
nos deixando impressa na prega do cotovelo a picada traiçoeira desta drogadição,
esta nova barbárie. Me adicione, pelo amor de Deus ao seu WhatsApp deste
altar de alta tecnologia transcendental!
E de lá, olhando para aquele casal, frente a frente no
banco do metrô, me pareceu enxergar nos dois afinidades não percebidas. Tanto é
que, chamei-os de casal, quando, evidentemente, eram desconhecidos um do outro.
Logo inventei uma história romântica, uma paixão arrebatadora, um amor à
primeira vista, à moda antiga, talvez não tão antiga assim. Jovens e de posse
plena de suas juventudes, transbordando naturalmente beleza e sedução. Um
instante a ser registrado para sempre num quadro de Van Gogh de cores
perturbadoras, navegando em veleiros de velas brancas acima de monstros
marinhos, baleias e crocodilos. Sou mesmo um incorrigível inventor de romances!
Entretanto, estava cada um imerso, embora frente a frente,
nas mensagens de seus celulares, teclando alucinadamente, e não notaram um ao
outro.
Quisera eu
viver o não vivido à margem do celular. Queria capturar as cores instigantes de
Van Gogh. Queria navegar, não nas ondas dialógicas da internet, mas na
emoção de um grande amor, tendo como aplicativo o espírito de aventura que
flagrasse o momento e o transformasse em presença viva e insubstituível. Queria
não precisar cortar minha orelha para conservar em mim o som e a imagem das
coisas frugais e voláteis. Queria não
chegar a tais extremos, extremos de uma dor sem anestesia, sem assentamento e
sem curativo palpável, pendurado como um quadro na parede de um museu para
sempre revisitado, para sempre renovado.
SÉRGIO PERAZZO
PRIMEIRA MENÇÃO HONROSA
PRÊMIO FLERTS NEBÓ
2017-2018
2
018
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