08/01/2019

A ORELHA DE VAN GOGH


No mesmo cesto de lixo a orelha de Van Gogh, a perna do Capitão Acab de Moby Dick e a mão do Capitão Gancho. Mesmo destino.
Fiquei por aqui matutando se Van Gogh cortando a própria orelha estaria mais que obedecendo a ordens de um mundo alucinado e impiedoso. Vedando a ferida que ficou com um pano encardido, representado num auto-retrato, queria apenas impedir que os sons que poderiam invadir sua cabeça ocupassem o lugar de suas imagens internas, de suas cores fulgurantes.
O tamponamento da orelha, mais do que qualquer coisa, impediria que lhe escorressem para suas telas e para o mundo os roxos e negros de suas noites eternas e os amarelos dos trigais, dos seus girassóis e de sua cadeira de palha.
Não tendo à mão uma baleia branca, no caso do Capitão Acab ou  um crocodilo, no caso do Capitão Gancho, arrancou a própria orelha, criando uma ferida na sua deslumbrante inspiração. Foi-se a orelha, ficou o auto-retrato que, certamente, já foi objeto de mil interpretações, de matéria de livros, de ensaios brilhantes e de teses e mais teses.
Quantas vezes nos auto-mutilamos, afogando sentimentos mal disfarçados ou mal compreendidos, para que não nos transborde a alma?
Quantas vezes recorremos a nossas baleeiras e a nossos navios-piratas neste afã de temer e de enfrentar tempestades?
Melhor baleeiras e navios-piratas à mercê de ventanias e furacões, oferecendo algum abrigo no mar encapelado do que nada. Melhor que casquinhas de nozes flutuando perdidas  depois  do naufrágio. Melhor que navios-fantasmas. E assim se associam o cego e o surdo-mudo, o gatuno e o vigarista, o coxo e o maneta, o roto e o esfarrapado, num pacto de solidão e silêncio.
Fica difícil acreditar que o mundo não é assim, que está assim. Ilha universal cercada de violência por todos os lados. Toda crueldade humana vindo à tona num mar cibernético tornado dialógico em comunicação constante através do celular que, como diriam nossos avós, já virou cachaça, nos deixando impressa na prega do cotovelo a picada traiçoeira desta drogadição, esta nova barbárie. Me adicione, pelo amor de Deus ao seu WhatsApp deste altar de alta tecnologia transcendental!
E de lá, olhando para aquele casal, frente a frente no banco do metrô, me pareceu enxergar nos dois afinidades não percebidas. Tanto é que, chamei-os de casal, quando, evidentemente, eram desconhecidos um do outro. Logo inventei uma história romântica, uma paixão arrebatadora, um amor à primeira vista, à moda antiga, talvez não tão antiga assim. Jovens e de posse plena de suas juventudes, transbordando naturalmente beleza e sedução. Um instante a ser registrado para sempre num quadro de Van Gogh de cores perturbadoras, navegando em veleiros de velas brancas acima de monstros marinhos, baleias e crocodilos. Sou mesmo um incorrigível inventor de romances!
Entretanto, estava cada um imerso, embora frente a frente, nas mensagens de seus celulares, teclando alucinadamente, e não notaram um ao outro.
Quisera eu viver o não vivido à margem do celular. Queria capturar as cores instigantes de Van Gogh. Queria navegar, não nas ondas dialógicas da internet, mas na emoção de um grande amor, tendo como aplicativo o espírito de aventura que flagrasse o momento e o transformasse em presença viva e insubstituível. Queria não precisar cortar minha orelha para conservar em mim o som e a imagem das coisas frugais e voláteis.  Queria não chegar a tais extremos, extremos de uma dor sem anestesia, sem assentamento e sem curativo palpável, pendurado como um quadro na parede de um museu para sempre revisitado, para sempre renovado.   

SÉRGIO PERAZZO
PRIMEIRA MENÇÃO HONROSA 
PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2017-2018
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018

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