-Doutor,
estou sentindo que perdi a poesia em minha vida.
Não
é todo dia que somos confrontados com uma frase assim. Normalmente a queixa é
mais próxima de “estou me sentindo triste” ou “estou com dor aqui ou ali”, mas
perder a poesia era algo novo para mim. Não me lembro de ter estudado esse
quadro na faculdade, nem debatido algum caso assim com meus professores. Mas
aquela moça, cabelos longos e negros, olhos azul-curioso, lançava-me essa
questão.
-O
que a senhora quer dizer com “perder a poesia”?
-Isso
mesmo, perdi a poesia. As pedras no meu caminho, agora são só pedras mesmo.
Nada mais tem rima, nem sonoridade. Agora minha vida está uma crônica chata de
jornal.
Aquilo
começava a ficar cada vez mais confuso para mim. Sonoridade? Pedra? Seria um
quadro depressivo? Resolvi arriscar:
-A
senhora se sente triste, desanimada, sozinha?
-Se
o senhor acha que eu estou com depressão, já vou logo avisando que não é isso.
No começo até pensei que fosse, mas depois vi que não: o problema é a poesia.
-E
quando começou esse quadro?
-Ah,
acho que faz um mês, mais ou menos... quando eu entrei no meu novo emprego.
-A
senhora trabalha com o que?
-Trabalho
num escritório de advocacia, organizando arquivos, digitando coisas, sabe?
Trabalho tradicional. No início, estava muito feliz, poxa, um trabalho novo,
novas perspectivas. Ainda conseguia entender metáforas, ainda via alegria nos
versos espalhados pelos muros dessa cidade. Mas a rotina, com o tempo, não sei,
doutor, acho que agora sou um verso metrificado, sabe? Decassílabo...
Nunca
me senti tão impotente na minha vida. Decassílabo? Seria isso um sinal clínico
do qual nunca haviam me informado?
-O
que aconteceu ao longo desse tempo?
-Eu
acho que me tornei um poema parnasiano, doutor. Sabe, daqueles bem fechados,
poema de dicionário? Sempre que ia escrever algum relatório para meu chefe,
tentava colocar uma metáfora, uma prosopopeia, mas isso sempre era visto com
maus olhos. Um dia, escrevi assim: “Nossa cliente relata que seu marido é um
fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que
deveras sente”. Pessoa, doutor, todo mundo gosta de Pessoa. Quando meu chefe
leu aquilo, achei que iria ser demitida. Fez-me prometer que nunca mais faria
aquilo, sob risco de ser mandada para o olho da rua. O senhor mesmo, doutor:
pode receitar um tango argentino para algum de seus pacientes?
-Creio
que não.
-Bandeira,
doutor, Bandeira. Acho que então deve entender o que eu quero dizer, não?
Não
estava entendo nada daquilo, mas tinha certeza que nenhum medicamento surtiria
efeito ali. Talvez um psicólogo? Psiquiatra? Também achava que não era o caso.
Continuei a conversa.
-Mais
alguma coisa aconteceu nesse meio tempo?
-Meu
namorado. Ele é um livro realista, doutor. Quer saber tudo nos detalhes mais íntimos,
às vezes é irônico, sempre realista. Disse que o meu amor por ele batia na
aorta, ele me mandou ir ao médico. Drummond, doutor. Não sei mais o que fazer.
Tenho medo de me tornar um manual de carro.
Agora
tinha certeza que o caso não era para remédios nem tratamento médico. Resolvi
arriscar um tratamento, pois não sabia mais o que fazer, mas queria ajudar a
moça despoetizada. Resolvi entrar no jogo.
-A
senhora ainda lê?
-No
máximo o jornal do metrô, doutor. Não tenho tempo, a vida está muito corrida,
sabe?
-Certo,
vamos tentar o seguinte. Vou te receitar 3 doses diárias de poesia. Uma de
manhã, uma no almoço e uma no jantar. Tente não ler nada pesado depois do
jantar ou antes de dormir porque pode fazer mal. De manhã, opte por textos mais
profundos. Não precisam ser textos longos, tente achar um tempo para isso. Faça
isso por quinze dias e volte aqui para verificarmos os resultados.
A
moça me olhava com cara de desconfiança, porém sorria. Agradeceu, pegou a
receita e saiu. Encostei-me à cadeira e pensei em como me fez falta a
disciplina de patologia literária na faculdade.
LUCAS HENRIQUE PEREIRA
Estudante
de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM)
PRIMEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP
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