Era 1977. Andar a pé, de ônibus, de metrô, tantas vezes. Tanto que, nas
mesmas horas do dia ou da noite se encontravam as mesmas pessoas, quase como um
relógio certeiro em suas badaladas. Assim era grande parte da vida de João. De
casa para o trabalho, do trabalho para a faculdade, da faculdade para casa. Nos
caminhos, gente que marcava humanamente os trajetos. Alguns conhecidos pelo
nome, outros apenas pela presença. Eventualmente, havia variações nessa rotina,
principalmente por conta do cinema, diversão barata de então. Em algumas destas
ocasiões, João entrava no ônibus Circular Avenidas.
Para ele, era como entrar em um mundo
diferente em relação à cidade do lado de fora, aparentemente caótica, mas ele
sabia que organizada naquelas pessoas-relógioque
a compunham. Dentro do Circular Avenidas a impressão era diferente,as pessoas
pareciam sempre variar. Alguma repetição ele viu quando uma mesma estudante, de
uniforme,apareceu duas vezes; também um senhor com chapéu e guarda-chuva por
três vezes, mas, em horários diferentes. João começou a pensar sobre isso e
percebeu que ele não usava o Circular Avenidas tão regularmente como os outros
ônibus ou meios de transporte. Constatou que não eram os passageiros que
variavam, ele é que variava os horários.
Mas, havia uma percepção diferente
dentro do Circular Avenidas, que erareforçadapelo fato de que nunca estava
muito cheio. As pessoas entravam e saiam em uma certa cadência, talvez por ser
um trajeto “circular”, como dizia o nome, sem fim nem começo. Até isso virou
uma lenda: alguns diziam que o início era na Avenida Paulista, outros na São
João. O fato é que esse ônibus não ia para lugar nenhum, e ao mesmo tempo para
vários. Se alguém se distraísse, ou dormisse, poderia constatar estar de volta
no mesmo lugar em que havia partido.
Em certa ocasião, João foi assistir àSessão Maldita do Cine Majestic,
que começava à meia noite. Depois do filme, de madrugada, sobrou só o Circular
Avenidas andando pela cidade. A partir dele, teria que andar por meia hora a pé
até chegar em casa, o que lhe parecia bastante razoável. Foi nesse transcurso,
que conheceu, sentado lá no fundo do ônibus, o Percival.
Conhecer, ele não conheceu assim como se
conhece as pessoas, com apresentações formais. João estava sentado no meio do
ônibus, ladeado e cercado por pessoas um tanto cabisbaixas de sono e da vida. De
repente, ouviu uma alta gargalhada e um berro: “Segura essa, Gilberto!”.
Gilberto era o motorista. Percival falou isso em uma curva acentuada e veloz,
que o ônibus fez na esquina vazia da Avenida São João com a Avenida Ipiranga.
Na dita exclamação, os sonolentos passageiros levantaram as pálpebras, depois
os olhos e viraram a cabeça, exceto um senhor sentado em um banco perfilado ao
lado do lugar de Percival, provavelmente porque já estava acostumado a esses
repentes. Aliás, Percival não estava sentado em um banco, mas espalhado em
vários, que, conectados, preenchiam o fundo do ônibus. Mais adiante, o Circular
parou fora do ponto. Alguns passageiros elevaram sobrancelhas curiosos, pois
perceberam, no tempo do corpo, que a parada não era comum. Gilberto saiu do
ônibus, retirou um cachorro do meio da rua e voltou ao volante. Percival: “Aêh,
Gilberto! Você tem o coração de ouro!” Gilberto retrucou: “Quieto, Percival!”.
Eis a revelação do nome.
Alguns pontos à frente, hora de descer.
João ficou encafifado com aquela personagem que acrescentou uma indagação sobre
o seu mundo à parte do Circular Avenidas.Por alguns dias, ficaram na memória
mais os berros do que a imagem do Percival, além daquelas cenas.
Alguns dias depois, em hora não tão
tardia, lá estava novamente, sentado no fundo do mesmo ônibus, o mesmo
Percival, e na direção o mesmo Gilberto. Desta vez, João teve que sentar mais
próximo à figura saliente, onde havia lugar. E o tal começou a falar com uma
voz clara que ressoava: “Hoje tá São Paulo da garoa. Muito bom. Nem quente, nem
frio.Você não acha?” Perguntou. A partir daí, entabularam uma conversa, que fez
o João perder o ponto em que desceria. Percival: “Não faz mal. Daqui a pouco
você vai chegar no mesmo ponto”. “Sim, mas vai ser uma baita volta”, disse o
João.
Essa expressão foi uma deixa para um discurso de Percival. Ajeitou-se,
levantando um pouco nos bancos em que se espalhava, e iniciou com uma voz, soma
de radialista com feirante:
“Olha, eu, quando sento aqui, não tenho pressa de levantar. Eu me
divirto nisso aqui. Dou voltas e voltas. Não tenho pressa. Eu vejo o mundo
passando sentado aqui no fundo. Eu conheço o Gilberto. Conheço os outros
motoristas. Nós vamos levando a vida. Eu com eles. Sabe que eu até sei dirigir
ônibus. Uma vez até precisou, quando um motorista começou a passar mal e eu
dirigi até o hospital. Mas eu fico no ônibus sempre à noite. É à noite que a
gente vê a alma da cidade. Quando você só entra e sai do Circular, você não vê
o mundo aqui dentro. Pra isso, precisa ficar aqui dentro. Dar muitas voltas. A
vida dá muitas voltas. Eu venho aqui toda noite. Às vezes mais tarde, às vezes
mais cedo, mas sempre de noite. É que aqui tem muito passageiro cansado, com
sono, só passando. Não. Eu não passo, eu fico. Só saio antes do amanhecer.
Quando a luz da rua começa a apagar, não estou mais aqui”.
O ônibus chegou novamente no ponto de João descer. Ele despediu-se de Percival, dizendo esperar encontrá-lo outra vez. Toda
aquela filosofia do passageiro permanentelhe provocou reflexões – tantas vezes
Percival falou a palavra aqui – e acrescentou mais mistério ao seu mundo à
parte do Circular.
O resto do ano foi bastante atribulado em estudos e trabalho, de modo
que João pegou o Circular só durante o dia. Mas, ficou cismado em reencontrar
Percival. Entrou o ano de 1978 e férias de janeiro. João foi passear de
Circular Avenidas tarde da noite. Entrou em um, desceu, depois em outro, e não
encontrou o Percival.
Pensou sobre onde poderia ficar ou morar
essa pessoa que passava as noites vagando e divagando. Lembrou da figura
lendária dos mitos medievais com o mesmo nome. Ficou em dúvida se vivenciou uma
lenda, ou uma ilusão, no ônibus. Em noites sucessivas, repetiu a busca. Deu
voltas. Com o passar das noites – não sabemos se ele percebeu – João, ele
mesmo, foi se tornando Percival.
AFONSO CARLOS NEVES
Médico Formado Pela Escola Paulista de Medicina
(UNIFESP)
SEGUNDO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP
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