Quando criança, minha mãe e eu tínhamos
um ritual antes de irmos dormir. Ela colocava minha cabeça em seu colo e
sussurrava baixinho, me pedindo para não fazer barulho, pedindo para que eu
escutasse o som do silêncio. Ela costumava dizer que se eu me concentrasse o
suficiente daria para ignorar todos os ruídos externos e escutar apenas o som
da Terra girando, o mundo se movendo, a noite aos poucos dando lugar ao dia.
Ficávamos assim até eu dormir. Era nosso ritual noturno.
Mesmo
depois que ela se matou, continuei cumprindo fielmente o nosso ritual. Eu me
concentrava cada vez mais para ouvir aquilo que ela chamava de som do silêncio,
algo que quando criança eu nunca conseguira ouvir direito. Aos poucos comecei a
entender aquilo que ela queria me mostrar.
É
realmente possível escutar a Terra girar, da mesma forma que você escuta uma
bola sendo rodada no chão. Mas eu passei a escutar muito mais. Ao fundo, bem
baixinho. No começo era quase imperceptível, mas com o tempo o volume foi
ficando mais alto, ou talvez eu tenha aprendido com a prática a isolar os
demais ruídos e só me concentrar nesse.
Era
uma espécie de zumbido. Mas um zumbido que não tinha o som de “z”. Era
claramente o som de “s”. A letra s em sua forma mais pura, constantemente
repetida de uma maneira que adentrava os ouvidos e lá permanecia. Um som que só
eu podia ouvir. Um som que falava comigo.
Silêncio
No
começo eu só escutava o som quando estava em silêncio, sempre antes de dormir.
Mas depois ele conseguiu entrar na minha cabeça e nunca mais saiu. Os sons de s
se transformaram em palavras, frases, um contínuo de sentenças o tempo todo na
minha cabeça.
Sempre palavras com s.
Silêncio Solidão Sujeira Surto Sexo
Sadismo Segurar Surrar Sorriso Sentir Servidão Sofrimento Suicídio
Parei
imediatamente o ritual noturno. Eu não queria mais ouvir aquele som. Não queria
mais ouvir o silêncio. Passava os
dias rondando pela cidade em locais barulhentos. Metrôs, avenidas movimentadas,
feiras. O silêncio era perigoso. O silêncio falava comigo. Não tinha mais
como fugir. Ele estava lá para sempre agora.
Nenhum
lugar era seguro mais. Nenhum barulho era suficiente para suprimir o som do silêncio. Independente de onde eu
estivesse, do que eu fizesse, mesmo quando eu gritava. Ele estava dentro da minha cabeça! Eu não conseguia parar de
escutar aquele som. Comecei a obedecer todos os comandos. Como eu poderia não
obedecer? Era a única forma de fazê-lo parar, de tirar aquilo de dentro de mim.
Isolei-me
de todos os poucos amigos que eu tinha. Solidão
Deixei
de tomar banho e de ter qualquer cuidado com a higiene da minha casa. Sujeira
Antes
de me trazerem para o hospital, me disseram que eu tive um episódio grave de
psicose. Surto
Uma
prostituta trabalhava perto da rua onde eu morava. Perguntei se ela gostaria de
ouvir o som do silêncio comigo. Ela riu, mas me seguiu até meu apartamento
depois de eu ter mostrado o dinheiro. Sexo
Amarrei
seus pulsos na minha cabeceira, com muita força. Não parei quando ela me disse
para parar. Sadismo
Apertei
seu pescoço por tempo demais. Segurar
Eu
não conseguia parar de bater. Ele não
me deixava parar. Surrar
Eu
não parava de sorrir enquanto os policiais me levavam. Eu estava feliz por
finalmente ter conseguido fazer com que ele
parasse. Eu não ouvia mais o “s”, só o som da sirene da viatura, os comentários
dos vizinhos, o barulho do tráfego. Sorriso
Mas
foi momentâneo.
Ele voltou. Ele sempre volta. Está sempre comigo.
Posso senti-lo como sinto cada um dos meus membros. Sentir
Obedecê-lo
é a única forma de continuar vivendo em paz. Servidão
Não
conseguirei me livrar dele até o dia em que eu acabar exatamente como a minha
mãe. Uma furadeira atravessada de uma orelha a outra passando pela cabeça. Só
assim ela conseguiu parar de ouvir o som do silêncio.
Sofrimento
Ela
se libertou. Suicídio
Você
não pode vê-lo. Talvez nem consiga senti-lo. Mas espero que isso não te iluda,
porque ele está lá, sempre estará.
Zumbindo baixinho. Tentando se comunicar. Pronto para entrar na sua cabeça. Não
tem como fugir do som do silêncio. Uma vez que você o escuta, jamais deixa de
ouvi-lo.
Nas
madrugadas tranquilas, quando você deitar na sua cama e respirar fundo por
alguns segundos, pare e se concentre no barulho do mundo girando. Com mais um
pouco de esforço, se concentre no “s” bem ao fundo. Eu sei que você vai
conseguir.
O
som do mais puro silêncio estará lá te esperando.
Ou
talvez seja apenas eu sussurrando a mensagem do silêncio nos seus ouvidos
enquanto você está de olhos fechados tentando dormir.
Você
já consegue ouvir?
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
CAROLINA VILELA MARTINS TONIN
Estudante da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FMUSP)
TERCEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
II INTERMED LITERÁRIA PAULISTA SOBRAMES SP
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