27/03/2011

BEM - TE - VI

A rua era bem arborizada e chovera muito na noite anterior.
Meu pai e eu subíamos lentamente a mesma para chegar à minha escola, o externato. Como sempre, eu caminhava tagarelando, e meu pai, distraidamente, me ouvia.
Subitamente, notando que meu tom de voz mudara, prestou mais atenção no que eu dizia pois, encostado no meio-fio estava um filhote de passarinho, de plumas eriçadas, se debatendo e eu o queria ver de perto.
Meu pai agachou-se e pegou o passarinho, colocando-o na palma de sua mão. Não precisava ser um veterinário para fazer o diagnóstico: estava com uma das pernas que-bradas. Com a forte chuva, deve ter caído de um ninho de alguma das árvores. Sorte sua que nenhum gato vadio o tivesse encontrado. Lá fui de volta para casa, contente da vida por não ir para a escola e impressionado com a preocupação de meu pai com aquele pequeno ser.
Ele tinha grande experiência com passarinhos e tinha em gaiolas cerca de meia dúzia de aves. Com todo carinho, com aquelas mãos enormes que tinha, delicadamente improvisou uma tala feita com um palito de fósforo, prendendo-a à perna do coitado com fita adesiva (durex). Pôs o bicho numa gaiola vaga e deu-lhe água e alpiste.
O tempo foi passando e o pássaro foi perdendo sua plumagem de filhote, transformando-se num exuberante bem-te-vi.
Foi um dia de festa quando meu pai achou que o pássaro poderia ficar sem a tala de palito de fósforo. De volta à gaiola, o bem-te-vi foi pulando numa perna só como fizera quando estava com a tala. Aos poucos e, cuidadosamente, foi se apoiando na perna recuperada até sentir-se seguro. Não tardou e voava dentro da gaiola, debatendo-se dentro daquele espaço restrito.
Fechamos as janelas e portas da cozinha e soltamos o pássaro. Pulou da gaiola para a pia, da pia para um banquinho e deste para o chão. A cada pulo, batia as asas para abrandar suas quedas. Saltitou um pouco pelo chão, bateu mais fortemente as asas e alçou vôo. Para todos nós que assistíamos, era a prova final da capacidade de veterinário de meu pai, e todos batemos palmas. Enfim, achando que tivesse sido cansativo para o bem-te-vi, foi colocado de volta na gaiola, repetindo-se o feito por mais alguns dias.
Num almoço de domingo, meu pai anunciou que iria soltar o bem-te vi.
Lá no jardim, abriu a portinhola da gaiola, o pássaro saiu, levantou voo e foi à procura do galho de árvore mais próximo. Apontamos para ele e, pela primeira vez, se pôs a cantar: Bem-te-vi! Bem-te-vi!, como a agradecer-nos por tudo que tínhamos feito por ele.
Durante vários meses deixamos, numa mesa lá fora, laranjas cortadas ao meio e, religiosamente, o bem-te-vi voltava, sempre anunciando sua presença com seu canto. Um dia, vimos que viera acompanhado de outro bem-te-vi. Cantando sublimemente, beliscou a laranja e, junto com sua companheira, levantou vôo. Nunca mais o vimos...
Ainda hoje, quando escuto o trinado de bem-te-vis nas árvores, imagino se não são descendentes daquele que, há tempos, salvamos de uma alagada sarjeta.

Walter Whitton Harris

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