19/03/2011

EU NÃO CONHEÇO O RIO SÃO FRANCISCO

          Sou paulistano, daqueles que pouco viajam. Não conheço o São Francisco, aliás, acho que muita gente de lá também não conhece, apesar da grande intimidade com o Velho Chico, mas não lhe sabem o nome. Américo Vespúcio, em 1501 navegou em sua foz, não sei se algum indígena avisou que ele estava nas águas do Opará.
          Eu só conheço o velho Rio Tietê, aquele que nasce em Salesópolis, com água saindo debaixo de pedras, atravessando nossa metrópole e desaguando no Rio Paraná, depois de navegar quase um mil e duzentos quilômetros.
          Eu não conheço o Velho Chico, apesar de saber que ele nasce na Serra da Canastra, em São Roque de Minas, atravessa cerca de dois mil e oitocentos quilômetros até chegar ao Oceano Atlântico, lá mesmo aonde Américo Vespúcio deve ter se assustado com a cor do mar.
          Eu não conheço a Serra da Canastra, mas conheço Salesópolis, quando fiz a minha primeira e única pescaria. Até hoje sinto remorsos de haver pescado um único peixe que ainda habita meus pesadelos por ter sido eu quem lhe tirou o direito à vida e a uma velhice calma e tranquila no Tietê.
          Sei que o Velho Chico passa por cidades históricas e importantes: Pirapora, Juazeiro, Petrolina, Piranhas. Não conheço nenhuma delas nem por fotografia. Nunca vi cartão postal nem conheço ninguém que tenha vindo de lá para me dar um dedo de prosa.
          O Tietê passa por São Paulo, a cidade mais importante da América Latina. Ganhou e ganha como prêmio pela sua ousadia, desde 1960, o esgoto mais rico do mundo, o odor mais fétido, o plástico mais contaminante. Meu pai aprendeu a nadar no Rio Tietê. Acredito, por lógica pura, que o pai de muita gente aprendeu a nadar no São Francisco. Não sei se ele é poluído como o Tietê, se for, é bom não se arriscar.
          No Tietê, só político em campanha em frente à televisão é capaz de entrar na água para se dizer hipocritamente patriota.
          O São Francisco tem a mesma história religiosa. Em 1706 chegava a Juazeiro uma missão de São Franciscanos para catequizar os índios. Em 1525 chegaram a São Paulo os jesuítas Padre José de Anchieta e Padre Manoel da Nóbrega para catequizar os índios daqui. No São Francisco, quase duzentos anos depois, a história se repetia. Há muito em comum: as missões construíram cidades importantes, catequizaram os índios oferecendo a eles a única verdade aceita, vinda de um catolicismo medieval, em troca da destruição de sua cultura, de suas religiões, deuses e crenças, da implantação da vergonha em seus corpos nus. Os dois rios continuaram, impávidos, procurando seus caminhos através dos vales para se encontrar com o mar salgado, obedecendo às suas únicas verdades. As águas do rio sempre encontram os seus caminhos.
          Não conheço Juazeiro, não conheço Pirapora, nem Petrolina, nem Piranhas. Conheço Salesópolis, São Paulo, Tietê, Botucatu. No interior, as cidades são mansas como as águas do rio. Acho que com o Velho Chico deve ser o mesmo: suas águas devem correr, imagino porque não conheço, cristalinas e mansas pelas cidades interioranas e quentes de Minas, da Bahia, de Pernambuco e de Alagoas. Deve colecionar histórias de crianças brincando, casais apaixonados, pescadores. Deve ter histórias de secas, de enchentes, de vida e de morte. O Tietê também deve ter, embora ninguém fale.
          O São Francisco tem várias ilhas, com areia branca, tem vapores cruzando suas águas. Não sei se o Tietê tem ilhas, mas tem inúmeras barragens. Já andei de barco em Barra Bonita, num Tietê limpo de um quilômetro de largura, atravessando a eclusa e indo a outro mundo dentro do rio. Mas não vi nenhuma ilha de praias brancas. Nas margens os canaviais se perdem de vista no horizonte.
          Quero conhecer o Velho Chico, um dia vou me aposentar, abandonar a medicina, se é que é possível e o São Francisco está na minha agenda. Conhecer o rio, suas praias, suas gentes, ver se é poluído ou não, conhecer quem aprendeu a nadar nas suas águas. Prometo não pescar, não tenho esse direito sobre a vida e a morte.
          Guimarães Rosa disse que a história do rio é a história do seu sofrimento. Certamente Guimarães Rosa não conhecida o Tietê, se conhecesse, o que diria...

Roberto Antônio Aniche

Um comentário:

  1. Olá, Márcia, achei bastante interessante a proposta de seu blog. Conheço muitos médicos, sou fisioterapeuta. Voltarei aqui mais vezes. Ótimo o texto de Roberto Antônio, ele é médico também?

    Convido para que leia e comente no http://jefhcardoso.blogspot.com/

    “Para o legítimo sonhador não há sonho frustrado, mas sim sonho em curso.” (Jefhcardoso)

    ResponderExcluir

Agradecemos sua atenção. Se possível deixe informações para fazermos contato.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...