19/03/2011

A CANTINA DO CICCIO CAPUANO NO BEXIGA

          Pretendo uma coisa e acabo fazendo outra... Deve ser a “vecchiaia”. Já estou falando em italiano. É perdoável: sou filho de calabrês. Um pouco de história... As grandes emigrações italianas aconteceram de 1890 até 1920. Depois a proibição por Mussolini. Os países escolhidos: Estados Unidos, Argentina e Brasil. No Brasil, os napolitanos ficaram na Mooca e Brás, os bareses na rua Oriente e os calabreses de Rossano no Bexiga. Os do norte da Itália, no Rio Grande do Sul.
          Tenho em particular um grande afeto pelo Bexiga, bairro onde nasci, criei meus filhos, vivi e mediquei durante 25 anos. Tornou-se uma obsessão. É caso para terapia... Peço desculpas... De novo, as minhas saudosas recordações de tempos idos e vividos que não voltarão mais. Eu me lembro... Eu me lembro... Da cantina do Ciccio Capuano, na rua Major Diogo, defronte à fábrica de doces Bela Vista do Infante, próxima ao famoso Teatro Brasileiro de Comédias. Funcionava num porão com 8 a 10 mesas. Horário: das 19 horas às 21h30, de terça-feira até domingo.
          O cardápio fixo escolhido pelo cantineiro e não pelos frequentadores. A entrada só com reserva antecipada, dada a grande procura. Era do conhecimento geral: comer bem, só na Cantina do Capuano. Além do esmerado preparo dos alimentos, o vinho importado da Calábria, o Ciro, vinha em tonéis e servido em litros. Não havia muita variedade... O antepasto consistia em: sardella, funghi, salame, azeitonas pretas, pomodoro seco, acompanhados pelo pão de “peito” italiano do padeiro Cianciarullo e naturalmente o milagroso, saboroso e nutritivo Ciro, vinho que dava mais beleza às mulheres e mais potência aos homens... Todo o complexo de inferioridade acabava na Cantina do Ciccio Capuano... Depois eram servidos dois pratos, geralmente, um macarrão com vôngole ou camarão e uma carne, de preferência uma perna de cabrito. Sobremesa: peras e maçãs. O ritual era severo: às 21h30, o cantineiro, acompanhado pelo sobrinho, fazia a conta no papel branco que cobria a mesa, recebia em dinheiro e dispensava os fregueses com um sonoro “Buona Notte”. Às 22 horas, a cantina estava fechada. Só dava jantar.
          Uma ocasião, o secretário de Getúlio Vargas pediu e exigiu do cantineiro um almoço. Este se negou dizendo: “O doutor Getúlio Vargas manda no Brasil, mas eu mando na minha cantina”. Estava estabelecido o território neutro em que o presidente da República não tinha poderes: a cantina do calabrês Ciccio Capuano.
Alguns historiadores argumentam que foi este o principal motivo da invasão, pelas forças federais, do Estado de São Paulo. Se é “vero non lo só”... Acredite quem quiser...
          Coisas do Bexiga... O bairro que é um mundo dentro de São Paulo, como o povo dizia naquela época, hoje, que decepção... Sujo, deteriorado, com pardieiros, cortiços, malocas, prostíbulos. Tenebroso. Triste realidade... E a cantina do Ciccio Capuano? O vento levou... E ele? Cozinhando prazerosamente para os anjos e arcanjos na eternidade. Só no jantar...

Rodolpho Civile

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