22/03/2011

HORAS ÍNTIMAS

"...Essa sou eu".
Desabrochou num sorriso que brotou do vestido estampado, graciosamente rodopiado, do brinco de capim dourado reluzindo fosco, da sandália de verniz e fivela de prata e das maçãs do rosto levemente maquiadas com o pincel da ousadia e do recato. Como se fora lenços coloridos saídos da manga de um mágico. Ou a pré-estréia de um filme ansiosamente aguardado na sala de espera de uma solidão extemporânea.

"Como você vê, meus olhos são castanhos.Não são azuis".
"Você usava lentes?"
"Você não viu?"
"A gente só se encontrou no escuro. Não dava pra ver."

Pela primeira vez à luz do dia. O beijo público de boca inteira....
Já no quarto, inteiramente nua:
Você prefere assim ou assim?
E segurava os cabelos negros em coque ou deixava que caíssem nos ombros com um sorriso provocativo. Difícil decidir. Tomei-a nos braços irresistível. O lusco-fusco da luz do abajur e o movimento do corpo deixavam entrever os vestígios da passagem de dois filhos que o ventre abrigara, minérios cintilantes de um solo marciano revolvido por uma sonda espacial minuciosamente explo-ratória. Medalhas da vida que a sua sensualidade amadurecida ostentava de um modo cada vez mais provocante e apaziguador.
Como o cantor que precede a noiva num casamento judaico com sua voz possante e melodiosa, exaltando os versos da Torá em exuberante liturgia, o coração batia forte antecipando o beijo envolto em véus sagrados de uma paixão a que se agarrava para não fugir de vez. Como se fosse a última cota a que se tem direito no latifúndio de uma gleba que não se conquista por herança, mas que nasce por dentro, sem se saber como, que nos apanha na curva do vento, no escorregar do seixo do rio, sem explicação, sem rótulos, uma intuição delicada a se espalhar no peito, a umedecer os olhos, a emudecer vocábulos, a esmerilhar sentimentos e a encorpar nos lábios o sabor e a alma enfim capturada incólume do outro.
Tudo deixou de ter importância de existir. Tudo se dissolveu na massa informe do tempo. Os sussurros devolveram aos ouvidos a captação de um amor recém-nascido. Primeiro, em tartamudeios, depois, em sílabas, até, finalmente, ser construído em tímidas palavras arquitetando frases e finalizando em diálogo confissões amorosas compartilhadas.
O que não era tornou-se íntimo. O que não fora se tornou o espírito da carne e a secreção do desejo. A espuma e o resíduo das coisas. O miasma sem contorno da paixão. Centelha que não quer fumaça. Fogo que não quer incêndio. Só luz e calor que atravessem intactos o rigor do inverno das nossas desesperanças.

Sergio Perazzo

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