ENCEFALITE...
Pior que meningite! Febre ardente. Cefaléia. Alteração do sono (insônia, letargia). Inconsciência. Delírio. Alucinação. Convulsão. Fraqueza muscular. Incoordenação da marcha. Paralisia. Seqüela... Mais grave se epidêmica, incontrolável!
No litoral sul de São Paulo, em 1975, a encefalite por vírus transmitido pelo mosquito atingiu a população pobre dos municípios litorâneos, especialmente, do Vale do Ribeira (Peruíbe, Registro, Iguape, Cananéia...). Primeira vez em território brasileiro! Pode ser descrita à maneira científica a tese fria , também, sob forma de fantasia para criança, em especial para Fátima a menina que ficou paraplégica. No hospital de campo, montado em horas na colônia da Força Pública, em Itanhaém, nada de brinquedoteca, só apoteca (espécie de butique de poções essenciais que existiram em idos tempos do Velho Continente).
Entre figurações, a árvore... o Dr. Nogueira, devotado médico de Itanhaém e instrutor de pilotagem aérea. O leão... o tenente Leontino, policial militar, ex-integrante da Força Expedicionária Brasileira nos campos de batalha, na Itália, durante a 2ª Grande Guerra Mundial. A boneca loira... a enfermeira Maria Teresa Müller. A modelo africano... Lalá, a servente só alegria. A pétala de flor... a nutricionista nissei, Emico. Os espíritos do mau da floresta... os mosquitos transmissores. Sua Majestade... o Governador Paulo Egydio Martins. O Primeiro Ministro... o Secretário da Saúde, Walter Leser. Os sacerdotes a queimarem incenso... a equipe terrestre e aérea de desinsetização. Os que souberam do amor... temerosos da morte, os doentes, pediram a legalização do matrimônio; não gostariam de partir deixando a companheira ao desamparo. O mago curador não chegou a ser identificado (apelidado, Apotecário, mas não era esse seu nome próprio); à boca pequena, teria sido agraciado pela corte com a comenda de ouro, por arriscar a vida em favor dos semelhantes.
Pois não é que a menina Fátima, de condição paupérrima, jamais ganhara um brinquedo! Fazer o quê?! Por falta de uma boneca foi-lhe contada a história própria, a sua história. O narrador não está bem lembrado, acha que Fátima adormeceu muito antes do final. Leitores ficam advertidos. Se der sono não advém de encefalite, provém do Autor desta prosa.
Ah! E não pense que o cidadão brasileiro é sempre cordial e hospitaleiro. O programa de reabilitação dos convalescentes incluiu o passeio, no trenzinho da alegria rebocado pelo trator, por ruas esvaziadas da cidade interiorana. Em lugar de aceno, ameaças de apedrejamento aos pacientes e aos cuidadores! Aí... o lobo que uivava lá fora.
Mas chega de conversa.
HISTORINHA PARA FÁTIMA
Para Fátima menina sem infância,escutar. E adormecer.
Para adulto com alma de criança,ouvir. E pensar.
País existiu de terras e mares. De rios e montanhas. Habitado por povos diferentes. De um lado, povo bonito, gente grande, saudável. Do outro, criaturas feias, maltrapilhas... simples pigmeus!
O lado bom do reino era cantado por arautos que divulgavam suas relíquias, tradições, belezas naturais. E dos ares, e das águas das fontes, a pureza. Viajores chegavam e partiam em carruagens de muitos cavalos. Magnatas e aventureiros capitaneavam naves próprias, riscando mares, adentrando rios.
A distância entre as regiões habitadas, por um e outro povo, para bom andarilho podia ser coberta em poucas luas. Existia, porém, a muralha de separação! Feita de cobre de alto custo, não erigida pelos nativos, é claro. Mas teimavam em sobreviver, multiplicando-se à-toa, protegidos em toscos casebres. Para fazerem jus à farinha, seu alimento, atravessavam pântanos tenebrosos e florestas até atingirem as terras que lavravam. Plantavam e colhiam frutos para mercadores poderosos que os exportavam para reinos distantes. Produtos tropicais exóticos, para servirem às mesas opulentas.
Os dias transcorriam quando estranha peste se espalha entre os humildes. Surgiu dos pântanos que entraram em ebulição e dos maus espíritos que habitavam a floresta. Sem recursos, os indígenas apertavam a cabeça com as mãos para não estourar. Bolas de fogo cegavam-lhe os olhos. Mudos, não podiam gritar. Desorientados, pisaram trilhas falsas... e a lama preta, movediça e voraz, os engoliu. Outros caiam, cá e acolá, imersos em sono interminável.
O nobre, proprietário das terras, acorreu ao palácio real. Inteirou Sua Majestade que ordenou ao Primeiro Ministro o combate à praga. Devotado ao bem-estar do povo o Ministro não hesitou em socorrer os infelizes ainda que, para tanto, tivesse de enfrentar a ira dos ricos mercenários indiferentes às conseqüências do misterioso flagelo.
Cuidadores, artífices, sacerdotes e mestres do povo foram convocados. Depressa elegeram sítio da região onde colocariam a salvo os vitimados. Ficava ao lado da grande árvore encantada que falava e sabiamente interpretava cada mímica dos nativos. Uma frondosa nogueira de raízes profundamente fincadas à terra, de ramagens eternamente verdes flutuantes no azul do céu. Sua seiva era capaz de neutralizar os miasmas dos mangues. Junto à nogueira existia uma gruta de bom tamanho a cuja entrada se postava imponente leão, o qual já fora exibido nas arenas romanas em luta de vida e morte contra feras temíveis. Seus combates do passado eram narrados nas assembléias do povo. Sobrevivera, tornando-se nobre como raros felinos, granjeando do homem a estima e o respeito. Franqueou o refúgio natural e assegurou guarda fiel contra os lobos que uivavam lá fora. Os artífices estenderam lonas que transformaram a gruta em tenda quente e acolhedora. Um velho mago curador e seus aprendizes tiraram do baú poções milagrosas e além das fórmulas... bonecas! Bonecas de corda, vestidas de branco. Variadas, uma, modelo africano. A primeira que foi acionada tinha cabelos de fios de ouro e olhos de azul do céu. Tratava-se de admirável engenho, fabricado no antigo império da Germânia. Ao contrário das bonecas comuns, elas vestiam e penteavam os pigmeus.
A cada novo dia os homúnculos foram alimentados com uma pétala de flor. Flor esquisita, encantada. Assim que a pétala era arrancada, difundia sutil fragrância e se refazia de imediato. Nutria e tinha o sabor que se desejasse. Nativa de longínqua ilha do mar do Japão, só brotava uma em cada 100 anos.
Enquanto os pigmeus eram assim cuidados, os mestres enviados pela Corte pregavam sobre práticas a fim de neutralizarem as malignidades. Ao mesmo instante, os sacerdotes queimavam incensos na floresta para aquietarem os espíritos do mal soltos no éter.
Finalmente, o poder conjunto do bem prevaleceu. Para alegria dos curadores e das bonecas de corda! dos sacerdotes e dos mestres educadores! e dos artífices e da nogueira e do leão! Emergindo do sono letal, desconfiados a princípio, logo confiantemente, os hominhos iam despertando para nova vida. Sua linguagem era entendida e seus anseios compreendidos. Cresciam e tornavam-se fisicamente indistinguíveis dos homens do lado bom. Pela primeira vez, surpreendidos a sorrir... e os que souberam do amor compuzeram pares.
Arary da Cruz Tiriba
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