30/09/2013

A MOÇA DE CINZA

            Pelas ruas tranquilas da Lapa nos anos 60, uma moça vivia cantarolando a música italiana “Santa Lucia”. De cabelos louros lisos e compridos, pele branca e pálida, quase sempre trajava um vestido cinza cobrindo os joelhos.
 –  Ela é louca – dizia minha mãe. Fiquem longe dela. Pode ser perigoso.
A jovem praticamente não saia de casa, mas ia comprar pão pela manhã bem cedo e ao findar da tarde. E, de vez em quando, rondava o quarteirão.
Tão grande era o medo que minha mãe só deixava que eu fosse para a escola depois que a jovem regressasse da padaria. Com frequência eu ficava pronta com o uniforme azul marinho impecável, lancheira a tiracolo, sapatos lustrosos e permanecia sentada no banco do jardim da frente, aguardando a liberação da rua. Tudo para evitar que nos cruzássemos pelo caminho.
Acontece que aos nove anos de idade eu ainda não entendia o perigo que ela pudesse representar. Seria contagioso? Ninguém me explicava. Apenas sabia que ela era assim devido a uma complicação do sarampo. Mas, assim como? Não exatamente louca como tantos casos psiquiátricos que muitos anos depois presenciei na Faculdade de Medicina com delírios, exageradas desinibições e gritos agressivos. Na verdade ela era simplesmente esquisita e solitária em sua ininterrupta cantoria napolitana.
De certo deveria provocar irritabilidade para quem ouvisse o tempo todo a mesma música. Porém, como ela se isolava em sua casa, quem mais sofria provavelmente era sua mãe que, por sinal, também pouco aparecia. Apesar de ser simpática e educada, a matriarca não conversava muito e limitava suas saídas para compras de sobrevivência. Ambas não trabalhavam e... O que será que elas faziam o dia inteiro sozinhas dentro de casa?
Não me lembro do nome da jovem. Aliás, pensando bem, eu nunca soube. Sempre a tratávamos como a louca da rua debaixo que saia pela manhã e à tarde para comprar pão cantando “Santa Lucia”. E só. O restante do tempo era como se ela não existisse.
Vez ou outra os meninos zombavam dela, se bem que às escondidas.
Acho que ela é uma bruxa, supôs um dos garotos. E essa leve hipótese fez com que todos se afastassem com receio de que seus olhos lançassem algum feitiço.
Da minha parte, na época, eu só desejava brincar e estudar. Mesmo porque tinha um incentivo extra para ir bem na escola. Todo início de mês, ao ver notas altas no boletim, minha mãe, satisfeita com o meu empenho, me recompensava dando algumas moedas para que eu comprasse doces na padaria, dinheiro suficiente para escolher três guloseimas. Como era agradável ver a vitrine repleta de doce de abóbora em forma de coração, pirulito puxa-puxa, caramelo de leite, cigarrinho de chocolate, maria mole, doces em borracha, dadinho além, é claro, dos atraentes potes rotativos de vidros com diversificadas balas. A dúvida para escolher tornava o prêmio mais atraente.
Eis que em uma tarde, na indecisão costumeira, meu coração acelerou ao ouvir uma voz cantando “Santa Lucia”. Sim, era a louca que se aproximava, antecipando seu horário de compra, talvez para fugir de uma chuva que prenunciava desabar a qualquer instante.
Pela primeira vez não tive como fugir do encontro. O curioso foi que ela entrou na padaria exalando um perfume suave de jasmim. Ora, na minha concepção, eu sinceramente a imaginava fedida... Se ela usava quase sempre o mesmo vestido cinza, deveria não tomar banho, não é mesmo? Qual o quê. Seu cabelo estava limpo, bem penteado, usava um discreto batom rosa e pela aparência eu julguei que ela devia ter menos que 30 anos de idade.
Com calma ela entregou para o seu Teixeira, o dono da padaria, um caderninho em que se anotavam as compras para pagar tudo no final do mês. Não disse uma palavra, preferindo continuar com sua canção. Num relance olhou para mim e eu pude perceber seus grandes olhos verdes que pareciam bolas de gude...
Bem que eu tentei puxar alguma conversa para satisfazer minha curiosidade infantil. Mas minha voz travou e não foi por hipnotismo ou maldição e, sim, por pura timidez. Apenas consegui sorrir, mas ela permaneceu alheia e saiu com uma bengala de pão debaixo do braço.
Raios e trovões alertavam sobre a chuva, e eu resolvi não esperar e também fui para casa. Fiquei atrás da moça que andava devagar, arrastando os pés pela rua deserta, marcando o ritmo da velha canção.
Assim que se iniciaram as férias de julho eu e minha família viajamos para o litoral e ao retornar soubemos que a jovem havia se mudado com a mãe. Depois de um ano de vizinhança saíram sem despedidas e sem ter conquistado nenhuma amizade. Nunca mais tivemos notícias.
Até hoje quando lá em casa colocamos um CD e ouvimos Pavarotti ou Andrea Bocelli cantar Santa Lucia, minha mãe se inquieta:
 –  Não gosto dessa música. Ela me lembra da louca.
Interessante como passados quase cinquenta anos, grande parte morando em outro bairro e com tantos acontecimentos já vivenciados, não conseguimos nos esquecer dela. Uma moça que se isolou da vida e o mundo reforçou esse isolamento.
Ao contrário da minha mãe, eu gosto de ouvir aquela canção. Sem dúvida, pela beleza da melodia. No fundo, talvez por querer acreditar que aquela jovem tenha conseguido, a sua maneira, encontrar um jeito de ser feliz.

MÁRCIA ETELLI COELHO
Primeiro lugar - Categoria Prosa
VII Jornada Nacional da Sobrames
XII Jornada Médico-Literária Paulista                                                                 

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