Ali,
na porta da quitanda, dois frondosos pés de azeitona preta faziam a amenidade
de uma sombra ventilada, que acolhia toscos bancos feitos com um tronco fino,
de madeira ordinária, enganchado por suas extremidades, sobre duas forquilhas
fincadas no chão. Rodeavam as azeitoneiras gêmeas e estavam sempre ocupados por
vizinhos que convergiam para trocas sociais.
Acontecia tudo, sabia-se tudo, planejava-se tudo. Era o passado, o presente e o futuro
daquele povo periférico. Era o ponto luminoso na escuridão material daquele
povoado perdido no meio do mundo dos matagais, onde o lombo das montarias ainda
era a condução obrigatória. Havia promessa de estrada vicinal que era o mote de
todo candidato que dali queria votos, mas os igapós das invernadas tornavam
essa ligação com a sede muito difícil.
Martinha fazia poeira varrendo o
terreiro com um cacho seco de juçara e espantava as galinhas que comiam o
catarro despregado da bronquite dos fumadores de cigarro de maço ou dos
charutos intoleráveis. Na lucidez da manhã as palavras eram escassas e
comedidas, contando um caso, quase sempre sobre roça invadida por porco ou
gado, moça solteira, assombração ou homem traído pela mulher. Mais tarde quando
a cachaça escorria pela língua e cortava a censura da consciência, corria solto um palavreado
chulo, dissensões de ideias e cobranças de atos e ocorrências. Mas, tudo
terminava sempre ali mesmo. Se tinha alguma alteração, Dona Silvéria, que era a
dona da quitanda, falava grosso e punha tudo de novo no caminho do
entendimento. Só que uma vez não conseguiu controlar dois brigões que
terminaram no Posto de Saúde, riscados de faca.
- Ela foi na Vila e vai demorar.
Martinha respondia para Joca Pé de
Galho que veio decretado para falar com a comerciante.
- Mas hoje? Domingo?
- É seu Joca, Veveca foi ver o filho
que se furou num espinho de tucum e não
pode nem encostar o pé no chão. O Doutor de lá fez de tudo pra tirar o espinho
mas não conseguiu . Deixou um buraco na
sola do pé dele. Ela me deixou tomando conta da quitanda, mas eu não gosto
porque eu não sei fazer conta assim direitinho. As vezes sai tudo errado e dou
troco demais. Ela briga comigo com toda razão. Gosto de estar é lá na cozinha
que é onde eu sei fazer de tudo.
Desolação marcou aquele rosto já
marcado por tantas dificuldades que, como campônio, vivia delas. Saiu de casa
logo cedo para ultimar com D. Silvéria o negócio de uns porcos que queria vender-lhe para com o dinheiro preparar um pedaço de
terra para plantar a sua roça, pois já estava atrasado. Já estavam aparecendo
nuvens pesadas e já tinha dado uns chuviscos.
Pé de Galho com o dedo indicador da
mão direita apontando para o céu empurrou a aba do chapéu pra cima, franziu o
cenho na claridade do meio dia e decidiu
esperar.
- Me dá uma cachaça aí!
Do jeito que jogou a cachaça na
garganta parecia que estava lavando suas contrariedades. Entrou no papo
coletivo falando baixo com a sensação de fracasso. Vivia de roça. Mulher,
filhos, mãe, tudo comia no calo das suas mãos. Já estava atrasado!
Bateu forte com o fundo do copo no
balcão e pediu:
- Me dá outra!
- Mais outra!
A ameaça de falhar lhe assustava e
nesses momentos procurava refúgio na cachaça que o tirava da seriedade das
responsabilidades. Considerava-se injustiçado pois mesmo com seus defeitos
nunca deixara a família em falta.
- Mais uma!
Seu Joca, o senhor já bebeu muito e ainda vai esperar um bocado.
O senhor não quer comer um sarrabulho, que sobrou de ontem?
Forrou-se de sarrabulho vencido, com
farinha seca. Estava até na tampa de comida e de bebida e nada de Dona
Silvéria.
- Lá vem sua mulher!
Escutou ainda no cochilo, recostado
no tronco da azeitoneira.
- Valha-me Deus! Tatinha vai me
esganar.
Ajeitou-se , limpou a boca, abotoou
a camisa, e encomendou um sorriso logo
que percebeu o seu humor desagradável.
- Tatinha do meu coração estou só
esperando a comadre para ir pra casa.
A mulher, com a ira em borbotões
tirava os adjetivos de todos os malandros, infiéis, estelionatário, ladrões,
assassinos, traficantes, psicopatas, e tudo que ela se lembrou, jogou sobre ele
num discurso lança-chamas que o queimou por uns dez minutos.
Enquanto ele se contraia para
tornar-se surdo, veio-lhe a repulsa na forma de náuseas. cólicas e vômitos. Ali
mesmo, na frondosidade sombria daquele terreiro, lançou um jato de sarrabulho
mastigado misturado na farinha seca inchada, embalado pelo azedume das
secreções estomacais, seguido de um repugnante bolo de lombrigas, que
desorientadas, faziam uma dança nojenta naquele palco de terra.
Tatinha reforçou a sua munição
dialética, destacando a vergonha diante daquele insólito espetáculo. Para
municiar-se de argumento em futuras contendas maritais pegou um graveto e
começou a contar as lombrigas:
- Meu Deus, esse homem me mata de
vergonha! Uma, duas, três,.......... nove..........treze......... quinze!
Quinze lombrigas! Que criação sebosa para quem só quer ser o que não marca na
folhinha.
Enquanto Tatinha remexia o bolo de
lombrigas com o graveto começou a sentir nojo que se manifestou em engulhos e
por fim em um vômito franco de pouco conteúdo alimentar mas também com um respeitável bolo de lombrigas.
Joca Pé de Galho, até então cabisbaixo
pelo massacre em curso, levantou-se meio cambaleante, pega o mesmo graveto e
começa a contagem:
- Um, dois, três,
........nove,........treze,.........quinze,.........dezenove.........vinte e
cinco....
ARQUIMEDES VIEGAS VALE
VII Jornada Nacional da Sobrames
XII Jornada Médico-Literária Paulista
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