Por: Márcia da Silva Sousa (Regional Maranhão)
PRIMEIRO LUGAR CATEGORIA PROSA
JORNADA SOBRAMES 2019
Virou rápido a esquina, quase
atropelando o pipoqueiro, veterano naquele ponto do bairro. Corria e andava
alternadamente, tentando disfarçar a ansiedade ofegante. Tomou atalho por um
beco, saindo no boulevard que leva ao parque da cidade, onde prédios antigos
exibiam charmosos tijolinhos caramelo e escadarias protegidas por corrimãos de
madeira e ferro,cuidadosamente trabalhados. Os degraus de pedra, enfeitados com
vasos de flores em tons variados de rosa, púrpura e azul, tornavam a rua uma
espécie de atração daquela parte da cidade, conhecida por abrigar artistas e
intelectuais. Os apartamentos com amplas janelas, proporcionavam uma vista
panorâmica do parque, especialmente radiante neste início de primavera.
Esgueirava-se observando as
fachadas,buscando o endereço guardado no papel que lhe fora entregue por uma
sua amiga, cujo tino de detetive a levara até ali. Os pés amarrados a toneladas
de ansiedade, não obedeciam ao desejo de vencer os degraus até a larga porta
carmim que dava para o hall do prédio. Era de fato uma linda porta, pensou,
tentando distrair-se. Um suor frio ensopou-lhe as mãos, que instintivamente se
utilizaram do papel para dar fim à umidade nervosa. A mente rodopiava num turbilhão de fatos que
levaram-na a suspeitar da infidelidade do marido. Finalmente estava ali, na
porta da amante.
Ensaiara aquele momento
exaustivamente, cada palavra a ser dita, cada gesto milimetricamente calculado.
Mostraria sua superioridade e a colocaria em seu lugar inferior, de quem se
contenta com migalhas alheias. Pelas fotos,percebeu tratar-se de uma mulher um
pouco mais velha que ela mesma, o que a fez sentir muito pior. Era madura e sem
beleza especial, exceto pelos olhos cor de mel,enigmáticos, quase hipnóticos.Sabendo-se
mais nova e mais bonita, precisava conhecer a rival e compreender o que a fazia
tão atraente ao marido. Lembrou de como encantara-se com a maturidade dele e
ele, com o frescor de sua juventude e a despeito da diferença de idade e interesses,
casaram-se. O que o levava agora, a frequentar assiduamente aquele endereço?
Precisava conhecê-la.
Engoliu em seco, o coração disparou
e a vista escureceu, voltou-se súbito, desistindo do intento e não fosse o
esbarrão na moradora que tentava entrar em casa, teria caído ali mesmo. Com um
gesto carinhoso, a mulher amparou-a e quando deu por si estava no apartamento
daquela estranha. Afundada numa poltrona, apreciava a vista do parque, absorta
em pensamentos. Despertou do transe aceitando a xícara de chá fumegante e foi
ajeitando a postura para agradecer sua benfeitora,quando se deparou com os
olhos da fotografia. Instintivamente tentou levantar-se, mas contida pela
anfitriã com um toque no ombro,permaneceu sentada, inerte.
— Tome o chá, vai se sentir melhor.
Obedeceu, enquanto a observava abrir
as cortinas, ampliando a bela vista. A maturidade não lhe roubara as curvas, o
vestido leve e os movimentos suaves,conferiam-lhe uma sensualidade natural que
poucas mulheres ostentam. A raiva ficou menor que a inveja. A segurança em cada
gesto daquela mulher a intimidou e o primeiro impulso de enfrentar sua rival,
deu lugar à idéia de tornar-se próxima, não revelaria quem era até o momento
oportuno.Surpreendeu-se com o ambiente de extremo bom gosto e
personalidade. Ao contrário do que imaginara, não vivia ali uma mulher vulgar.
Observou a mobília assinada por designers,objetos de arte, algumas telas
autênticas e livros famosos que jamais lera, exceto pelo “Cartas a Nora” de James Joyce;
emocionante crônica do surgimento de uma paixão amorosa, ao mesmo tempo
romântica e erótica, atravessada pelas dúvidas e os ciúmes de Joyce.As cartas
oscilam entre o céu e o inferno, o ciúme e a entrega, o romântico e o
obsceno.Revelador.
Tudo ali denunciava uma mulher
perigosamente culta e interessante. E isto não era algo a ser subestimado.
Agradeceu a hospitalidade e o chá, desculpando-se pelo incômodo. Tentou
justificar seu mal-estar,mas a anfitriã interrompeu,estendendo-lhe a mão
direita:
— Não se desculpe. Meu nome é Margot.
Denunciou o nervosismo com um
trêmulo aperto de mãos e um nome falso.
— Obrigada,sou Sandra.
Dirigiram-se à porta e antes que
perguntasse se poderia voltar com um mimo para retribuir-lhe a gentileza, foi
surpreendida com um beijo na face:
— Volte sempre que quiser Sandra...
Levou consigo o perfume da rival.
Era fresco e marcante o aroma de bergamota.Um
arrepio, talvez de medo, percorreu-lhe o corpo.
Voltou diariamente, mantendo
distância segura, de onde observava os amantes entrarem ao final da tarde,
sempre no mesmo dia da semana. A imaginação torturava, desenhando cada detalhe
do que se passava naquele apartamento. Chegara a hora de reagir.
Escolheu o dia certo.Pôs a melhor
roupa, o melhor perfume, a melhor lingerie e sentiu-se confiante.Levou um
vasinho de flores à guisa de agradecimento e aguardou. Margot não pareceu
surpresa com a visita, sorriu brevemente e convidou-a a entrar.
— Obrigada pelas flores…
Jasmim-dos-açores!É uma trepadeira sabia?
— É? Combina com você! – Disse,
camuflando a ironia.
Em poucos meses, estavam
irremediavelmente próximas. Compartilharam experiências, apreciaram boa mesa
juntas, riram e divertiram-se pela cidade. Finalmente conheceu e compreendeu o
encanto que seduziu seu marido. Apreciou e aprendeu tudo. Percebeu,inclusive,
que ele não ocupava o espaço pretendido na vida de sua rival eque a visitava
cada vez menos, passando a se interessar pela mudança de comportamento dela
própria, influenciada pelo aprendizado adquirido. Estava amoroso, mas era
tarde.
O marido entrou em casa
animado,trazendo flores, como há muito não acontecia. Ao tropeçar nas malas
perto da porta, vendo que a esposa o aguardava, entendeu de pronto o que se
passava. Olhava-o sem expressar sentimento e com gélido amargor sentenciou:
— Você vai deixá-la!
Nem tentou negar a infidelidade.
Chorou, pediu, implorou, ajoelhou-se aos pés da esposa, muda e fria. Nunca mais
veria aquela mulher, nem a ela nem a nenhuma outra, nunca! Só não o mandasse
embora!
Desvencilhou-se devagar, como quem
limpa de si algo asqueroso. Passou sobre aquele corpo no chão e olhando-o de
cima, falou com autêntico regozijo:
— Estou indo morar com ela... a
amante agora é minha!
Pegou suas malas e saiu.
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