À minha mãe
Morreu quem rezava por mim. Desde a morte do meu pai, há 28 anos, eu falava com ela toda semana. Ponte telefônica Rio-São Paulo. Nessas horas minha mãe sempre dizia: Eu rezo por você todos os dias.
Essa história de rezar mudou muito ao longo de nossas vidas. Houve tempo em que eu, aluno de jesuítas por insistência dela, descobri, um tanto chocado, em seu armário, meio escondidos, uma roupa e um tênis brancos. Uniforme de ir ao centro espírita toda quarta-feira, acabei sabendo, influência direta da Dona Maria, nossa vizinha e sua grande amiga.
Lembro que, bem pequeno, eu era levado à casa dela para tomar passes e tomar banho de arruda para descarrego e que ficava um tanto assustado, imaginando sei lá que coisas cabalísticas que me assombravam os pesadelos.
Esse casal de portugueses, Dona Maria e Seu Antônio, tinha em casa uma oficina de alfaiate. Ela, como calceira de mão cheia, ajudava o marido com os ternos de risca-de-giz, tropical, casimira e linho branco.
Era o próprio Seu Antônio que contara não ter suportado as pulgas fazendo a festa na sua cama, obrigando-o a levantar-se de madrugada para se livrar delas na mesma banheira em que eu tomava os tais fluidos espíritas com toque de arruda e sal grosso, espada-de-são-jorge atrás da porta.
Imaginem a cena insólita daquele portuga barrigudinho, bigodudo e de cabelo espetado, afogando pulgas numa banheira de água fria em plena noite carioca abafada em 35 graus.
Até hoje tenho viva a lembrança da sala de jantar desse casal de portugueses que eram todo carinho e gargalhadas das palhaçadas do meu pai. Três quadros nas paredes: a Santa Ceia, o Sagrado Coração de Jesus e, o maior de todos, a fotografia com moldura dourada do Getúlio Vargas de casaca, transfixado pela faixa presidencial. Uma radiografia fiel daquela época populista. E olha que os donos da casa nem brasileiros eram. Por essas e outras meu avô detestava o Getúlio.
Mudamos daquela vila (era uma vila) e o espiritismo de minha mãe e suas inclinações mediúnicas ficaram para trás, a que se seguiu um longo tempo de latência um tanto agnóstica. Depois que meu pai morreu, virou beata de sacristia, se encheu de amigas de fita vermelha e medalha benta no pescoço, e foi promovida a encarregada de registrar, num livro, os batizados da Igreja, aos domingos. Não faltava nunca às festas de vez e outra em homenagem ao Monsenhor e, se não fosse tão idosa, eu ia acabar achando que os dois estavam tendo um caso, de tanto que ele ocupava suas conversas, lugar de pai, lugar de marido, vazio de viúva.
Um belo dia foi assaltada dentro de casa, no apartamento antigo de Santa Teresa. Gritou, esperneou, teve as pernas amarradas, não se intimidou e fugiu pulando para a casa de uma vizinha, aproveitando uma deixa numa hora em que os ladrões se distraíram.
No pronto-socorro, o mesmo em que eu trabalhara anos antes, enquanto tratavam de suas contusões, deu de cara com o ladrão que a assaltara uma hora antes, que estava sendo atendido com os arranhões da fuga, reconhecendo-o em voz alta para os policiais presentes, que o levaram para a delegacia.
O ladrão era filho de uma vizinha do outro lado da rua. Meu irmão e eu, temendo represálias, rapidinho, transferimos a mãe para um prédio em Copacabana, onde fez amigas e de onde ia andar na praia, com pausa para descansar na estátua do Drummond sentada no banco, até quase o ano em que morreu como um interruptor que se desligasse sozinho. Assim era minha mãe, essa mãe que rezava por mim todo dia.
Como criança que pede para ver o mesmo filme quinhentas vezes, meu pai repetia mil vezes qualquer coisa que lhe agradasse. Sempre que lhe sobrava um dinheirinho extra, lá íamos nós, numa festa de família, almoçar ou jantar num mesmo restaurante numa daquelas ruelas que esquartejavam a Cinelândia. O prato era sempre o mesmo: filé à francesa, com sua guarnição de batatas palha, tirinhas de presunto e de cebola e ervilhas (petit pois em carioquês). Era um banquete que queríamos repetir sempre da mesma maneira. Minha mãe, que cozinhava desde menina, também fazia o tal filé. Depois que mudei para São Paulo, quando ia visitá-la, me recebia com o filé à francesa ou eu ia levá-la a um restaurante para saborear o mesmo prato.
Este filé, até hoje, integra o cardápio de muitos restaurantes do Rio. É relativamente fácil de ser encontrado, o que já não acontece em São Paulo. Precisei acessar a internet para, enfim, encontrá-lo no bairro de Pinheiros. Quando me bate uma saudade de família, de pai e mãe, vocês podem me encontrar na Toca do Coelho, ali na Teodoro, almoçando filé à francesa. Meu modo de matar saudades de uma infância feliz.
Quando minha mãe morreu, meu irmão perguntou o que eu queria levar das coisas dela. Escolhi algumas fotografias e seus cadernos de receitas com o filé à francesa e seu nhoque, que estava servido à mesa, com carne assada, na última vez que a visitei com vida, aos quase 90 anos.
Porém, a relação de pais e filhos é sempre um balaio de gatos. Para mim nunca foi diferente. Como imagino que não é pra vocês.
Meu irmão do meio, por exemplo, vivia às turras com minha mãe, mas os dois se entendiam perfeitamente. Sempre tive inveja da intimidade que lhes permitiam brigar e fazer as pazes mais naturalmente, fruto de uma maior semelhança que existia entre eles, a começar pelos olhos verdes de gato. Minha relação com ela era mais reservada. Não tão felina.
Ela não disfarçava ou disfarçava mal certos sentimentos. De minha parte, eu achava que em determinados momentos era melhor mentir e mentir com a veia de um bom ator, para não apagar o entusiasmo do outro, embora nem sempre isso seja possível, se um turbilhão de coisas estiver acontecendo. Um bom exemplo disso, é a história do colar e do anel de formatura.
Meu pai sempre foi de exageros. Tudo era sentido e expressado sem meios termos. Totalmente passional. Não havia lugar para emoções fracas. Se assistia a uma comédia no cinema, ria alto sem parar até escorregar da cadeira. Literalmente. Se me recebia de manhã na chegada do trem noturno vindo de São Paulo, me abraçava aos prantos como se eu regressasse de um longo exílio na China. Soluçava sem o menor constrangimento, que ficava todo ele sob forma de vergonha no meu rosto ruborizado.
Assim ele fora apaixonado por mamãe, uma garota do mesmo bairro em que morava e que conhecera no baile de domingo no clube perto de casa, onde ele era o cestinha do time de basquete. Chamava-a de Branca, não só pela cor de sua pele delicada, como pela valsa, Branca, de Zequinha de Abreu, que em si valia como uma declaração de amor, sucesso romântico daquela Era do Rádio. É claro que no primeiro dia em que entrou na casa dela, para pedi-la em namoro, teve que sair correndo, com uma desculpa furada, por causa de uma súbita dor de barriga em terno branco. Meu pai era tal personagem, uma vitrine de emoções.
Perto do aniversário de casamento dos dois, meu pai ganhou no bicho. Sempre fazia uma fezinha com o bicheiro da esquina, apostando na interpretação popular dos seus sonhos. Sonhar com morto, por exemplo, dá elefante na cabeça.
Pois bem, ganhou, embolsou a grana, dessa vez uma boa bolada, todo bicheiro era honesto e honrava o compromisso no fio do bigode, e foi direto à Joalheria Esmeralda, ali na Sete de Setembro, não muito longe do Real Gabinete Português de Leitura, onde trabalhava como balconista o marido de uma prima em terceiro grau de mamãe. A mesma joalheria onde ele comprou o relógio de pulso Seiko de corda manual, que me deu ainda no tempo de faculdade, o único que tenho e que uso até hoje com muito carinho. Comprou um colar de esmeraldas falsas, uma espécie de Fernão Dias com suas turmalinas ou outras imitações, que nós, meninos, achamos bárbaro, e levou para casa num estojo chique de couro verde escuro.
Ao seu estilo, não cabendo de ansiedade e paixão, ainda vivendo os acordes da valsa Branca da juventude, estendeu-lhe o embrulho do presente de aniversário de casamento. Recebeu de volta a cara aguada de minha mãe, que não conseguiu disfarçar a decepção e a falta de entusiasmo, o quanto ele gastara naquilo, ela precisando de uma máquina de lavar roupa nova etc. Verdade é que ela nunca usou a jóia, que ficou para sempre adormecida no estojo, com uma única exceção. Balde de água fria é pouco para descrever a reação do meu pai, um argentino criado no embalo de tangos melodramáticos.
Passaram-se os anos, cresci e me vi encaminhando meus sonhos em forma de projetos, para que não virassem utopia, que eu resumia em anéis. Dizia, para os mais íntimos, que só ficaria satisfeito na vida no dia em que usasse dois anéis: uma aliança e um anel de formatura. Queria mostrar ao mundo o meu ideal romântico e de família e a respeitabilidade conquistada de uma carreira reconhecida. A contradição disso tudo é que eu sempre detestei usar anel, inclusive relegando ao fundo de uma gaveta um anel de ouro com minhas iniciais gravadas e outro com um diamante que herdara do meu padrinho.
Mas a vida, como sempre faz, em vez de chutar a gol, passou a bola para a lateral do campo. A mulher por quem de fato me apaixonei, com quem não tive filhos e de quem, mais tarde, me separei, era uma socióloga que não dava a mínima, ou dizia assim, para vestido de noiva, que ela acabou vestindo, e muito menos para anel de formatura, com o que eu já concordava na época, achava cafona e que, na prática, quase nenhum médico usava mais. E, ainda por cima, atrapalhava qualquer procedimento cirúrgico. Deixou de ser um símbolo importante para mim.
Não foi sem razão, que passei todo tempo do último ano de faculdade dizendo e reafirmando para meus pais que eu não queria anel de formatura e que jamais o usaria. Que me dessem outra coisa, se fosse o caso.
No dia da minha missa de formatura, a primeira de uma série de solenidades, na porta da Igreja da Candelária, imediatamente antes de entrar, minha mãe, emocionadíssima, me estendeu a caixinha de veludo azul com meu anel de formatura ostentando uma reluzente esmeralda, num desajeitado abraço.
Eu que era adepto de disfarçar para poupar a decepção das boas intenções do outro, não consegui esconder o meu profundo desagrado e a frustração se propagou para os dois lados, não pude evitar. Só fui aprender sobre generosidade muitos anos depois. Naquele instante só a minha autonomia importava. Corria o ano de 1968 com todas as suas imposições ideológicas. Mesmo assim, tentei um acordo. Coloquei o anel no dedo e lhe disse que só o usaria durante as festas de formatura e nunca mais. Segui à risca tal promessa. Não era mais simples usar o anel naqueles dias e pronto? Sem precisar dizer nada? Ou simplesmente agradecer?
No baile de formatura lá estava minha mãe com o colar de esmeraldas. A única vez que usou. Só muito depois ela me contou que vendera o colar para pagar meu anel de formatura. Negociou com o marido da prima, aquele da joalheria, entregar o colar depois do baile de formatura para poder usá-lo aquela única vez.
Como nos contos de fadas, passaram-se mais alguns anos. Já casado, tinha acabado de passar num concurso público para ocupar o cargo de psiquiatra num hospital estadual. Enquanto aguardava a nomeação, fiquei três meses desempregado e com o dinheiro curto.
Justamente nesse período ia acontecer em Interlagos a primeira corrida de Fórmula 1 no Brasil, com o Emerson Fittipaldi, e eu não tinha dinheiro para ir. Podia ter pedido emprestado a algum amigo. Não seria problema. Entretanto, são tantos os entretantos dessa vida, tive a idéia estúpida de empenhar meu anel de formatura na Caixa Econômica para comprar as entradas. E foi o que fiz. Na última volta o carro do Emerson, que vinha em primeiro, quebrou a suspensão bem na minha frente e perdeu a corrida.
Três meses depois não fui resgatar o anel na Caixa. Nem renovar a cautela. Não é que não tivesse o dinheiro. Tinha. Não sei o que me deu. Não é verdade. Em parte, pelo menos, eu sabia.
Contemplando hoje o túmulo de família no enterro de minha mãe, me dava uma sensação estranha aquelas caixas de plástico cheias dos ossos dos meus parentes: meu pai, um irmão, uma sobrinha ainda bebê, meus avós, meus bisavós, tios, primos, reduzidos a cacos, como imprestáveis utensílios velhos e quebrados de cozinha. Resultado de migrantes que se sacrificaram por mim, já que não podiam, eles, se tornarem doutores de canudo na mão, artesãos, operários e pequenos comerciantes que eram. Canalizaram em mim seus sonhos, seus desejos e eu lhes correspondi. Fui o primeiro a ganhar um anel de formatura.
Minha mãe, coitada, saiu da escola com 8 anos de idade, assim que aprendeu a ler e escrever (minha avó era analfabeta, mulher não precisava de mais nada), para ajudar na casa e na cozinha dos pais, enquanto minha avó trabalhava em outra cozinha, a do botequim do marido.
Ela mesmo, quando operária de fábrica de tecidos, antes de conhecer meu avô, inscreveu-se num concurso de canto na própria fábrica em que trabalhava. Voz de ouro que tinha, ganharia de barbada. Meu bisavô não deixou, coisa de puta.
Minha mãe, por sua vez, desenhava para mim carrinhos de corrida, aprendia tudo quanto era trabalho manual e, durante muitos anos, confeccionava todo tipo de flor artificial de todos os matizes e de todas as texturas. Aceitava encomendas mesmo não precisando, só para manter vivo o seu espírito de criação. Uma artista de coração sem assinatura em nada.
Foi assim, diante de tudo isso, que aceitei o encargo. Cuidei, primeiro, dos corpos, quando fui clínico. Depois, das almas, quando me tornei psiquiatra. Com isso entreguei a cada um deles a minha vocação literária e musical tornadas hobby. Nunca me arrependi.
Por isso, devolvi e devolvo o anel derretido no escapamento da Lotus do Emerson, com a suspensão quebrada e o tanque de óleo vazado incendiando o motor e nunca mais fui ou vou buscá-lo. Gato por lebre. Turmalinas por esmeraldas. Como Fernão Dias, trotei para longe nessa terra de bandeirantes em busca de esmeraldas falsas. Foi esse o desencontro com minha mãe, que deposito hoje no túmulo de família, abrigando o terço que meu irmão lhe trouxe do Vaticano e que lhe pôs nas mãos cruzadas somente no dia do enterro, como um passaporte, com medo que o roubassem à noite, quando fecha o velório. Sinal dos tempos.
Se ela me deu o símbolo de suas esperanças nunca concretizadas, em forma de anel, eu lhe dei em troca o meu coração de artista, por falta de algo mais valioso que lhe restituísse o colar de falsas esmeraldas,que trocou por mim, um dia, num balcão de joalheria. Em frente do Real Gabinete Português de Leitura.
Sergio Perazzo
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